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ESCREVENDO PERSONAGENS LGBTIA+

Existe uma onda de interesse por ficção especulativa nacional, feiras e eventos acontecem toda a semana com um bom afluxo de leitores, pessoas interessadas em se ver representadas nos livros e coletâneas. Entre os escritores de ficção especulativa nacional cresce também a inclusão de personagens que fujam de protagonistas masculinos, brancos e cis-héteros. Personagens de diferentes etnias, origens, orientações, gêneros passam a interessar como protagonistas.

Não estou usando a palavra onda como coisa passageira, prefiro entender como uma tissunami, que arrasa velhas estruturas para que novas possam nascer e ocupar o espaço de maneira mais criativa e justa.

Não é meu lugar de fala tecer considerações sobre como seria incluir personagens negras, pessoas com necessidades especiais, indígenas etc, para escrever personagens assim conto com ajuda de leitores sensíveis. Mas como pessoa quir acho que posso falar um pouco de como vejo os personagens LGBTIA+ nas ficções que leio e de como gostaria de vê-los.

Em primeiro lugar cito alguns problemas com personagens LGBTIA+ em narrativas. Devo confessar que já usei de alguns clichês quando ainda não tinha coragem de me expor. Ou seja, este tipo de construção equivocada de personagem LGBTIA+ em narrativas não é exclusividade de pessoas cis hétero.

O QUE NÃO FAZER                                                                              

  1. Personagem secundário que não faz falta

Personagem LGBTIA+ amigue da personagem principal, que serve só para ajudar  protagonista cis hétero a parecer uma pessoa flexível e antenada com o seu tempo. A pessoa LGBTIA+ geralmente morre, e o sofrimento é só uma escada para o leitor perceber o quanto a personagem cis hétero é humana. A pessoa LGBTIA+ é apagada pela supremacia de personagem hétero, ou pior, salva por personagem hétero.

Personagem LGBT engraçado. Para quebrar a dramaticidade, “colorir” (como odeio essa palavra) a trama por assim dizer. Geralmente é afeminado ou travesti, ou a lésbica bush que conserta caminhões (naves espaciais, no caso) ou é soldado, orc etc. Toda a força do estereótipo que o autor conseguir colocar para provocar risos no leitor. Personagens não são tridimensionais, não acrescentam à trama nada além de uma quebra pontual de narrativa, não servem como representação ao leitor LGBTIA+.

Personagem LGBTIA+ invisível. O pior dos casos, com o único propósito de passar pano para narrativa não inclusiva. O autor(a)(e) ou editora disfarça o texto para alcançar um público maior ou gerar críticas positivas da “crítica antenada”. Personagem que não é diretamente amigue de ninguém, que aparece numa parte mínima da narrativa e que poderia ser um cachorro e não faria falta alguma.

2. Personagem principal não humano

Por falar em pisar em ovos. Considero ofensivo quando todos os personagens principais são humanos, héteros, cis, e os LGBTIA+ são não humanos ou são alienígenas. Vivendo numa elfalândia qualquer ou num planeta muito muito distante.

Se todos os personagens são fantásticos ou alienígenas, ainda existe uma passabilidade para o fato dos LGBTIA+ não serem humanos, no entanto é preciso observar os estereótipos mencionados no item anterior. Por que aquele núcleo de personagens diversos existe? Qual a função deles na trama? Se é só para ser amiguinhe de protagonista cis hétero, não escreva.

As pessoas LGBTIA+ são geralmente excluídas de narrativa por serem invisíveis no sentido de que não são a “norma social e cultural” aceita, como disse incluo uma parcela da população LGBTIA+ na questão que também não se enxerga como parte da normalidade. LGBTIA+ existem, sempre existiram e sempre existirão na História da humanidade, com diferentes graus de tolerância dependendo da sociedade, da época e da religião, então não adianta nada a chiadeira de intolerantes, LGBTIA+ são parte da normalidade, parte da multiplicidade de representações humanas.

Quando uma pessoa não escreve personagens LGBTIA+ como parte da normalidade é porque não os enxerga assim, foi condicionada a não perceber a existência dos LGBTIA+. Autora, autor, autore que diz que escreve os personagens sem pesar essa questão, que usa da “liberdade artística”, percebe-se como o centro do mundo e escreve basicamente sobre seu umbigo. Nada errado escrever sobre o próprio umbigo, mas aconselho ler O Quarto de Jacob de Virgínia Woolf, onde o personagem Jacob é narrado de outros pontos de vista, menos o dele.

Então quando escritores/as inserem um personagem LGBTIA+ de raça diferente – alienígena, orc, elfo, duende – num ambiente predominantemente humano, acabam tirando a humanidade da representação do personagem, haja vista que nenhuma representação, nenhuma história é sobre alienígenas, pois nunca tivemos contato com um, ou seres fantásticos, pois eles fazem parte do imaginário, toda ficção especulativa é de certa forma alegoria da nossa própria realidade, do nosso momento histórico, da nossa vivência. Ao fazer do personagem um ser não humano em meio a humanos a “norma” aceita continurá vigente. É como se dissessem: “Noutro planeta/mundo tudo bem existirem LGBTIA+, no nosso não.”  

OBS.: Antes que alguém cite A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin escreveu esse livro no século passado, cinquenta anos atrás, os tempos são outros, estamos quase na terceira década do século XXI.

3. A catarse do sofredor ou vilão

Personagem LGBTIA+ para provocar ódio ou lágrimas nos leitores são clichês absolutos. A mulher trans prostituta que sofre agressão e acaba morrendo no meio da rua, viciada que troca o corpo por substâncias químicas, o gay que é expulso de casa e também se prostitui e usa drogas. LGBTIA+ psicopata que é reprimide pela mãe ou abusade pelo pai e se torna um serial killer. Um exemplo clássico é o serial killer do Silêncio dos Inocentes.

A despeito da realidade cruel em que vivemos: dois LGBTIA+ entre 8 e 60 anos são assassinados por dia no nosso país, a maioria das mulheres trans são prostitutas, crianças e adolescentes LGBTIA+ são constantemente vítimas de abusos por parte de parentes e pessoas próximas, grande parte dessas pessoas acabam vivendo na rua em condições degradantes, não é isso que essas pessoas esperam para suas vidas. Não é o que querem ver nas histórias ficcionais. Por que a ficção tem que espelhar a dor? A alegoria dos problemas vividos pelos LGBTIA+ pode ser diferente, pode ser lidar com um rebanho de mamutes com presas de ouro ou uma nave espacial quebrada.

COMO ESCREVER UM PERSONAGEM LGBTIA+

A primeira pergunta a se fazer é porque escrever um personagem LGBTIA+, se é só para parecer maneiro, não faça. O primeiríssimo passo é reconhecer e entender as pessoas LGBTIA+ como parte da sociedade, da sua própria comunidade. Entender que você, escritora/r/e, poderia ser um LGBTIA+ e nada mudaria, ou isso é o que deveria acontecer se a sociedade fosse justa e igualitária. A segunda pergunta é para quem estou escrevendo? Se não revelar que personagem é LGBTIA+ no começo da trama e deixando a “surpresa’ para o meio ou o fim da história a representação atingirá pessoas hétero cis, porque a pessoa LGBTIA+ não se verá representada desde o início. Pergunte-se se está escrevendo para incluir personagens diverses para hétero cis ver ou porque LGBTIA+ têm que ser representades. Você revela que sua personagem cis hétero é cis hétero? Por que não? A falsa normalidade que permeia nossas relações é mais limitadora que reguladora de nossas relações sociais, precisamos pensar que tipo de relações queremos com outras pessoas, antes mesmo de pensar em representá-las.

1º Passo

Converse com uma ou mais pessoas do espectro que quer representar. Pergunte como uma pessoa trans entende o próprio corpo. Pergunte a uma pessoa assex quando ela se descobriu. Pergunte das descobertas, das constantes descobertas. Nossa representatividade de gênero e parte da nossa sexualidade são construções sociais feitas de tijolos de culpa, repressão, dúvidas e acertos colocados um sobre o outro ao longo de nossas vidas. Somos seres razoavelmente longevos, décadas de impermanência aguardam cada criança que nasce.

2o Passo

O que é a normalidade? É uma pergunta que não deveria existir, mas no mundo ficcional tradicional, não experimental ou filosófico, ela é crucial para desenvolver um bom personagem LGBTIA+.

Uma das colocações mais obtusas na hora de incluir personagem diverso é dizer literalmente a diversidade de personagem.

“Fulano era negro” quando não se diz qual a etnia de outres personagens.

“Fulana era lésbica” quando não se diz qual a orientação sexual de outres personagens.

Quer dizer, esse personagem não é igual a outres. É diferente, não pertencente, não incluído na “norma”.

Como fazer para não dizer que a pessoa é lésbica? Mencione uma namorada, inclua um comentário sobre uma pessoa bonita, desenvolva um romance entre as duas. Exercite formas não diretas de dizer, volte ao primeiro passo e converse com alguém do espectro LGBTIA+.

“A pessoa pegou a arma com a mão esquerda e fez mira.” Eu sei que a pessoa de quem se escreve é canhota, não preciso dizer. “A pessoa, que era canhota, pegou a arma com a mão esquerda e fez mira.”

Escolha uma profissão para sua personagem lésbica que não seja ser caminhoneira, que não seja um clichê ou uma profissão masculina, afinal uma coisa não tem nada a ver com a outra, se não consegue pensar na sua personagem lésbica de outra forma volte ao primeiro passo.

3º Passo

Sexualização de personagem LGBTIA+ é uma questão delicada, se só o personagem LGBTIA+ é sexualizade, então temos um problema, se personagem faz parte de uma sociedade edonista, não há nenhum problema. Outra vez o primeiro passo é importante, ao conversar com diferentes pessoas LGBTIA+, escritor/a/e perceberá que não muda nada em termos de intensidade ou falta de intensidade em relação às diferenças dentro do espectro para uma pessoa cis hétero, são questões humanas individuais, cada indivíduo entende de sua manifestação da sexualidade.

Será que personagem LGBTIA+ está reproduzindo machismo, misoginia ou misândria?  Esta pergunta deve ser feita e refeita. Personagens gays que odeiam vagina e lésbicas que odeiam pênis, por exemplo, são no mínimo transfóbicos.

4º Passo

Existem quatro pontos básicos a serem observados ao escrever sobre personagens LGBTIA+. 

  1. Orientação de gênero – em 2015 a cidade de Nova York nos EUA, reconheceu 31 gêneros e expressões de gênero diferentes (matéria abaixo). Uma pessoa cis é uma pessoa que se reconhece do gênero designado – por outra pessoa como pais, responsáveis, força da lei – ao nascer, que se sente confortável com essa designação. Pessoas trans são pessoas que pertencem a outro alinhamento de gênero, feminino, masculino, não bináries, diferente daquele que ela foi designada. As pessoas trans não necessariamente passam por alinhamento, há trans homens de seios e trans mulheres de pênis, a representação física faz parte da expressão de gênero.
  2. Expressão de gênero – como a pessoa gosta de expressar seu gênero. Por exemplo, aquela menina que só usa “roupas de menino”, pode ser hétero e cis, só tem uma maneira diferente de se expressar. Lembrando que a expressão de gênero passa por convenções sociais.
  3. Orientação sexual – por quem a pessoa se atrai fisicamente, ou por quem não se atraia no caso de assexuais. Héteros, gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais etc.
  4. Orientação romântica – por quem a pessoa se atrai romanticamente ou intelectualmente. Por exemplo, uma pessoa bissexual pode sentir-se atraída romanticamente por um determinado gênero e fisicamente por outro.

Num dos meus contos escrevi personagem de gênero não binárie fluíde, representação feminina, orientação sexual não romântica e sexual bissexual.

COMPLICAÇÕES

Há duas formas de se pensar na inclusão de personagens LGBTIA+. A primeira se refere ao tempo que uma pessoa cis hétero terá que dispensar à pesquisa, às dificuldades para entender e construir um personagem diferente, o que algum autor/autora pode achar um pouco cansative. A segunda se refere a não ser preguiçose e ser criative, aproveitar esse leque imenso de possibilidades de escrever personagens ricos e diferentes que os espectros LGBTIA+ e os outros recortes dentro desse espectro, étnicos, por exemplo, nos oferecem.

Links para artigos e podcasts relacionados

Nesse blog

https://claudiadu.wordpress.com/2016/09/05/pequenas-consideracoes-sobre-os-pronomes-de-genero-x-e-i/

https://claudiadu.wordpress.com/2019/08/06/marcadores-de-genero-ii/

Nova York reconhece 31 gêneros e representação de gêneros (em inglês)

https://www1.nyc.gov/assets/cchr/downloads/pdf/publications/GenderID_Card2015.pdf

12 Fundamental to write the others (and the self) (em inglês) Há uma tradução nesse blog

Diversidade em Star Trek – HQ da Vida – Part 1 e 2

https://www.spreaker.com/user/halfdeaf/hqpedia-07-diversidade-em-star-trek-part

Marcadores de Gênero II

Considerações sobre o uso na ficção

No primeiro artigo, escrito três anos atrás, minhas observações e comparações foram basicamente sobre questões morfológicas em pronomes, adjetivos e substantivos. No atual, pretendo me envolver um pouco mais em questões semânticas. A carga simbólica e quando usar.

Antes, tenho que mencionar que de lá para cá pouco mudou, quem usa os capacitistas “x” e “@” para neutralidade continua usando, eu uso o “e” o mais que posso, já expliquei a razão no link: https://claudiadu.wordpress.com/2016/09/05/pequenas-consideracoes-sobre-os-pronomes-de-genero-x-e-i/.

O que mudou nesses três anos foi o número cada vez maior de escritores que incluem personagens diversos, mas que se concentram em pessoas binárias: trans, gays e lésbicas binárias e esquecem todas as outras letrinhas da sopa LGBT, ou mesmo as desconhecem, afinal ficar antenade demanda tempo, internet rápida, informação prévia e convenhamos que boa parcela da população não tem nada disso. Dicas sobre como construir um personagem LGBT fica para outro artigo.

Simbolismos

Profissões, cargos são majoritariamente masculinos. O empreiteiro, o diretor, o comerciante, o cientista. Para quebrar essa hegemonia masculina no comando da cadeia produtiva, podemos usar o feminino quando mencionamos profissionais no sentido geral.

“As cientistas se reuniram todas na sala de conferência à espera de um comunicado do chefe de estado. A sala estava em completo silêncio até que o responsável pelos experimentos o quebrou:

– Eu causei o problema. Por que todas estão parecem constrangidas? – perguntou Roberto.”

Na primeira leitura, para os acostumados com textos tradicionais, há uma falha de compreensão no gênero dos envolvidos. Se eram todas mulheres na sala, o que fazia Roberto no meio delas? Há tantas sutilezas de como a construção social influencia nossa percepção que precisaria de um TCC inteiro para responder essa pergunta. As perguntas aqui seriam: qual a relevância para a trama? Como lidar em outros trechos para que a leitora/leitor/leitore menos atente possa estabelecer um vínculo com a mensagem e, de alguma forma, superar a carga da construção social?

“Os cientistas se reuniram todos na sala de conferência à espera de um comunicado da chefe de estado. A sala estava em completo silêncio até que a responsável pelos experimentos o quebrou:

– Eu causei o problema. Por que todos parecem constrangidos? – perguntou Roberta.”

O segundo modo soa mais natural? Se você responder sim, precisa pensar nas razões que levaram você a achar natural generalizar no masculino e não no feminino.

Se você acha que não faz diferença, o convido (masculino mesmo) a catar coquinho.

Em ambos os textos há duas personagens com gêneros definidos e não gerais, para essas eu uso o pronome que mais respeita a identidade da pessoa: a chefe, o chefe, Roberto, Roberta. A escolha da carga indentitária dos personagens por autoras deve ser ponderada na fase de planejamento da história. A escolha dos adjetivos ou das características de personagens pode nos indicar também problemas em relação às nossas próprias razões para escrever dessa forma. Quando digo problemas me refiro às questões culturais e pessoais.

Não seria melhor escrever sempre usando um marcador neutro?

Quando conseguirmos pensar numa nova linguagem e nos livrarmos dos símbolos sexistas, pode ser. Mas ainda não vivemos esse momento, ainda vivemos numa sociedade binarista em essência. Gênero importa para muita gente, por exemplo, para o trans homem faz uma enorme diferença usar um pronome neutro no lugar de um masculino, o masculino pesa na sua luta por se ver representado, portanto fará diferença para seu personagem trans homem.

No entanto, a língua muda à medida que mudam os paradigmas, os valores da sociedade, nesse sentido a inclusão paulatina de neutralidade nas questões de gênero pode, ao longo prazo, ser um indicador de uma sociedade mais igualitária. Lembrando que só o fato de uma parcela da intelectualidade cosmopolita desejar que a linguagem neutra seja viável, não significa que a grande parcela da sociedade, que não é nem intelectualizada, nem cosmopolita (*), queira essa mudança ou no mínimo tenha ciência da possibilidade de mudança.

(*) cosmopolita no sentido em que grandes concentrações humanas em áreas centrais de metrópoles tornam as diferenças mais presentes no cotidiano e mais “normalizadas”.

Quando usar ou não usar definição de gênero

Quando for necessário, quando a definição de gênero for importante. Para uma representação feminina ou masculina, seja cis ou trans. Para as palavras que não designam pessoas: a casa, o carro, a rua, o caminho.

Quando não queremos definir personagem por gênero, quando não binárie, intersexe, egênere etc. Em 2016, Nova Iorque passou uma lei em que reconhecia 31 diferentes gêneros (há controvérsias quanto à designação de alguns), o que fazer quando a diversidade bate tão contundentemente à nossa porta? Ser o mais fiel a não conformidade de personagem.

A autora pode alternar o gênero em caso de fluído? Não vejo porque não chamar pelo masculino uma hora e noutra pelo feminino. Pode ser complicado para as leitoras no início, mas que seja, a autora se acostuma, a leitora também. Uma equação de segundo grau é um problema insolúvel para uma criança da terceira série, mas nada demais para uma aluna do último ano do ensino médio. Não subestime suas leitoras.

Usar marcadores neutros exige prática, escrever e reescrever, escolher a correta construção de frase, de palavra, para que a escrita fique clara e fluente ao mesmo tempo faça justiça às características de personagem. Substituir pronomes como ele, ela, dele, delas por diferentes construções. Substituir o generalisador eles, por pessoas, ou da/do por de. Fazer jus ao que o português nos oferece – o sujeito oculto.

“Os pedestres se assustaram com o terremoto. Eles não acreditaram que pudesse ocorrer dois no mesmo dia. A culpa era dela/dele.”

“As pessoas na rua se assustaram com o terremoto. Não acreditaram que pudesse ocorrer dois no mesmo dia. A culpa era de nome de personagem.”

Pedestres se assustaram com o terremoto. Não acreditaram que pudesse ocorrer dois no mesmo dia. A culpa era de engenheire.”

Revisão e Copidesque

Bons escritores dependem de bons revisores, é fato. Não existe revisor especializado em português que possa avaliar se seu texto contém erros em expressão neutra de gênero. O ideal é procurar e pagar um leitor beta que seja similar à pessoa retratada no seu livro/conto/poema/HQ e pedir uma leitura atenta, ou uma colega escritora que tenha familiaridade com marcadores.

Contribua

Não é nada fácil mudar a maneira de se expressar, nem possível do dia para a noite. Mas vale a pena começar a tentar, cometer erros, aprender com eles, para que um dia consigamos nos comunicar de forma mais igualitária.

Como esse é um assunto ainda em construção, qualquer sugestão será bem vinda. Vocês já usaram marcadores neutros? Qual personagem? Como funcionou para leitoras?

Experimentação na Ficção Curta

Matsuo Basho

No lançamento do volume 1 da Trasgo, revista especializada em ficção especulativa, fantasia e ficção científica, fui convidade a participar de uma mesa redonda com o editor Rodrigo Van Kampen e a escritora e amiga Karen Alvares. O propósito inicial da mesa era falar sobre experimentação na ficção curta, mas abrimos o leque da discussão e acabamos falando sobre mercado editorial, experiências de publicação em editoras e independente etc., conduzindo a conversa de acordo com a audiência. Infelizmente eu tinha um compromisso importante à noite e não pudemos nos alongar e falar sobre experimentação.

A ficção curta tem o tamanho ideal para testar nossos experimentos linguísticos e especulativos. Não porque seja mais simples fazer um conto do que um romance, ambos exigem de escritore um determinado tipo de comprometimento. Na ficção curta – conto, micro conto, poesia – podemos nos permitir explorar com mais liberdade, pois ela é sintética e deixa pouco espaço para escapar ao contexto, num romance, cheio de nuances e personagens, elementos que quebrem a regra podem quebrar também o ritmo da narrativa, ou serem supérfluos em relação ao todo.

Experimentar significa ir além de parecer estranho ou desconfortável. Escritore deixa de lado as convenções da língua ou da estrutura narrativa e busca alternativas para se expressar. Este desligamento diegético ou estético, no entanto, tem que servir ao propósito do conteúdo.

O ponto de partida para a disgreção é a regra. Entender a tradição literária em português, Machado, Cecília, Eça, Pessoa. Conhecer sua narrativa, suas metáforas, o posicionamento social e cultural, a forma, para então desafiar as convenções. Na narrativa não-experimental, e escritore se atenta ao cenário, à construção de personagens multi dimensionais, à descrição vívida da ação, aos diálogos marcantes e identificáveis, referências culturais e transformações aplicadas aos personagens, ação ou cenário. A ligação com a “realidade” é mais contundente, exige-se uma suspensão de descrença e uma verossimilhança que coloquem e leitore na pele do protagonista.

Na narrativa experimental, e escritore tende a ser mais metafísico, mental e emocional, a “realidade”, como apontada no parágrafo anterior, raramente é organizada e limpa. A escrita é descontinuada, fragmentária, com elementos gráficos, personagens sem contornos ou identidade. E leitore é levade a interagir diretamente com o texto, não se trata mais de ser transportade e viver a vida do personagem, mas investigar a si mesmo dentro do contexto. Provocar uma sensação, mais do que a compreensão da narrativa, e leitore se questiona através dela.

Indico a leitura do conto 73 do Jogo da Amarelinha de Júlio Cortazar (contista obrigatório), para entender como é ser levade à sensação de parafuso sendo apertado pelo ritmo e escolha das palavras, analisar o porquê da escolha simbólica do autor. Décio Pignatari, Guimarães Rosa, Jorge Luís Borges, são experimentadores que, assim como Cortazar, já se tornaram clássicos. Será que podemos desafiar os desafiadores?

A pergunta a se fazer para verificar a experimentação no texto é a contra-experimentação. O que sobra se tirarmos os elementos experimentais? A experiência desviou-se ou diluiu a ideia inicial? Há elementos clássicos interagindo com o texto? Quais? Qual a importância destes elementos?

Algumas experimentações são menos metafísicas e mais diretas, como o uso de marcadores neutros de gênero que desafia a norma culta da escrita, ou diálogos com o formato de mensagem em redes sociais, narrativa não-linear etc. O próprio nome já diz que vamos fazer da nossa escrita um laboratório de testes, jentar e falhar várias vezes até acertar, ou não, pode resolver jogar fora e voltar-se para outro projeto. Mesmo quando ao ler o texto tiver a sensação de desafio às convenções, precisará ainda perguntar o propósito de querer desafiá-las e se conseguiu atingir sua intenção inicial, não para si mesmo, óbvio, para e leitore. Afinal, experimental não quer dizer ser hermético, voltado para o próprio umbigo. Compartilhamos experiências para torná-las úteis.

Exemplos

Na revista Psychopomp, gratuita, o texto da brasileira Beatriz L. Seeleander está em formato de questionário, a última pergunta (tradução minha):

15. Fim

  • a) o fim?
  • b) seguido de cinco livros com o spin-off da série
  • c) a morte é o único fim, as outras histórias foram ideologicamente editadas
  • d) não existe nada para se começar. Isso é ficção

Narrativa não-linear, o autor Fábio Fernandes narra uma história sobre amor de forma fragmentária na edição 11 da revista Trasgo. Amor: Uma Arqueologia.  , pode ser lido gratuitamente.

Personagens sem contornos e interferências gráficas na poesia e prosa da autora Adriana Versiani dos Anjos, A Física dos Beatles, Contos dos Dias, A Lâmina que Matou meu Pai.

How to Contemplate the World From The Detroit House of Correction and Begin My Life Over Again da autora Joyce Carol Oates.

 

Links para meus escritos – não experimentais 🙂

gratuito

Editora Draco

Amazon

 

 

 

 

 

 

 

 

Descrevendo um boi

bOI

Como começar a descrever um boi? Dando a ele o nome de boi.

Abro as abas dos dicionários, livros, sites de pesquisa e de imagens antes de começar a escrever. Sei que precisarei recorrer para buscar a palavra adequada, verificar uma referência, me inspirar. O dicionário de sinônimos é um dos sites usados pelos escritores, afinal é um erro repetir, um vício de linguagem.

O português é uma língua rica, mas de nomes esquecidos. Uma características dos nativos de língua inglesa é a fascinação pelos sinônimos, por aprender outras formas de dizer as mesmas palavras. Na escola há competições de spelling bee, os competidores precisam conhecer palavras incomuns, as pessoas jogam scrabble, um jogo em que o que conta é o tamanho do vocabulário. Além do fato do inglês ser uma mistura de várias línguas que eram usadas em concomitância antes da consolidação do idioma.

O mesmo não acontece com o português, nossa cultura é diferente, não damos tanto valor ao estabelecido. Há quem ache importante não deixar o vernáculo morrer, há quem discuta que a língua é um organismo vivo e deixemos que viva com liberdade, se recrie a partir do hoje. Nós somos pródigos em cunhar palavras, regionalismos, nomes próprios. Será que Guimarães Rosa seria Guimarães Rosa se não fosse brasileiro? Lógico que um bom conhecimento do vernáculo é importante para o escritor, não precisa ser só isso no entanto.

Com a massiva difusão de livros de nativos de língua inglesa, ou que são traduzidos para o português através do original em inglês, o tradutor se depara com termos que se usados literalmente ficariam assim: “tinha um brilho brilhoso”, ou “tinha um brilho rutilante”, o primeiro é uma redundância, o segundo pode estar mais próximo do original, mas provoca uma pausa na leitura ou pode não fazer sentido ao público ao qual se destina. Óbvio que um ou outro termo menos comum é interessante para se colocar num livro. O leitor aumenta seu vocabulário. Como dizer que o rio coleava ao invés de serpenteava. Mas não em todas as linhas, em todos os parágrafos, ou a leitura ficará cansativa e desinteressante.

O que isso tem a ver com dar nomes aos oxen, digo, bois. Palavras generalizantes ou com significados distorcidos são usadas para evitar redundância ou causar a tal “estranheza”. A história causa estranheza, as palavras mal colocadas causam desinteresse do leitor. O escritor em português, amador, iniciante, muitas vezes usa o termo generalizante quando quer falar do específico, por exemplo, por causa dos manuais de RPG e livros mal traduzidos ou porque, ao invés de mudar a estrutura da frase, prefere usar uma palavra que pretenda deixar o leitor em suspense e que, na verdade, leva o leitor a suspender a leitura.

  1. “Pelo contorno da figura, podia-se dizer que era uma pessoa”.
  2. “A figura lançou um coquetel molotov em direção ao tanque”.
  3. “Ela tinha uma bela figura, expressão confiante no rosto e andar seguro”.

No caso do número um, a redundância de contorno e figura. “O contorno de uma pessoa, podia-se dizer”.

No caso número dois falta clareza, a primeira acepção da palavra figura não significa a forma de uma pessoa, refere-se à forma de qualquer corpo ou ser, uma barata, um alienígena. A não ser que seja isto mesmo, que o autor esteja se referindo a uma criatura fantástica ou desconhecida, a palavra é inadequada. Um ser humano jogou o coquetel molotov, então é preferível dar nomes aos bois. “A pessoa/Uma pessoa/Um sujeito/A manifestante lançou um coquetel molotov em direção ao tanque.” No terceiro caso está claro que a palavra figura se refere à segunda acepção da palavra, aparência de alguém.

“O castelo apareceu por entre as brumas da manhã. Os muros altos, cujas paredes eram feitas de pedra, cercavam a cidade e protegiam a construção no seu centro”.

Fica melhor assim:

“A névoa da manhã se dissipava. As torres ficaram visíveis e, em seguida, a muralha de pedra que protegia o castelo e a cidade ao seu redor”.

Se a escolha da palavra não está ligada ao ritmo dentro da sentença/parágrafo, sensação de não inclusão ao ambiente ou ao nome do lugar/pessoa, o ideal é que usemos a palavra mais comum, neste caso névoa é melhor do que bruma. Já uma muralha é um muro alto espesso geralmente feito de pedras. Por fim, se o castelo estava atrás dos muros, não foi ele que apareceu primeiro, foram as suas torres ou as torres de vigilância da própria muralha.

“A criatura se aproximou com suas oito patas e um corpo gigantesco e monstruoso. Fumaça saia de suas narinas.”

Se é um monstro, deixe claro na primeira menção. Fumaça não é a palavra certa, a não ser que se trate de um dragão. Seria interessante economizar adjetivos e descrever com metáforas, mas não vou usar no exemplo, só colocar um pouco de tempero para melhorar o resultado:

“O monstro se aproximava. Quando uma das oito patas gigantescas tocava o chão, as paredes tremiam. A criatura arfava de raiva, um bafo quente e podre.”

Procure a palavra certa, coloque na ordem certa de importância. Seja direto, simples e claro. Vocabulário inadequado ou escasso, faz com que a nossa ideia chegue distorcida ou não chegue ao leitor. Por outro lado, ter um vocabulário muito amplo não significa que dominaremos a língua, precisamos saber como usar as palavras numa frase, ter noção de conjunto, ritmo etc.

Links de outros artigos que falam do uso das palavras.

A Inconfundível Clareza do Ser – Dicas para o escritor iniciante – 18

IMERSÃO – EXPLORANDO OS CINCO SENTIDOS – DICAS PARA O ESCRITOR INICIANTE 31

A Força da Palavra – Dicas Para o Escritor Iniciante 17

Reino Sem Fim – RPG e ficção escrita – Dicas para o escritor iniciante 24

Micro Contos – Como e Porque Escrever

flash-fiction

O que são e o que não são Micro Contos

Micro contos são narrativas muito curtas, com 300 palavras ou menos, que trazem uma história total, não parcial. Não são muito populares no Brasil, nem mesmo tem valor comercial. Então por que nós, escritores brasileiros, deveriamos perder tempo escrevendo micro contos?

Primeiro porque para o escritor qualquer forma de escrita é válida. De haicais à sagas em “n” volumes.

Escrever micro contos permite ao autor avaliar o que é importante na prosa. Trabalhar o vocabulário e escolher as palavras mais adequadas. Cortar  redundâncias e tudo o que não é essencial. O autor fica afiado na hora de escrever narrativas longas. Além do que é uma forma de arte com as palavras, um modo divertido ou profundo de contar histórias.

Precisamos saber, no entanto, o que um micro conto NÃO é: um resumo de uma história ou uma parte isolada de uma narrativa maior. Pensamentos aleatórios ou reflexões, cenários desconexos ou piadas. Ações sem contexto não são micro contos. Recortes dentro de uma narrativa maior não são micro contos.

Micro Contos são narrativas completas e como tal necessitam de enredo, elementos do arco narrativo (reviravolta, flash backs, repetições, conflitos etc.), personagens, local, tempo.

Dois micro contos e seus elementos narrativos

Assim como o conto tradicional, a linha narrativa é melhor desenvolvida se baseada em no máximo três personagens e a trama contenha elementos simples e facilmente reconhecíveis.

Acerto de Contas – Lydia Davis (considerada uma das melhores escritoras contemporâneas de narrativa curta)

 “O fato de ele não me dizer sempre a verdade faz duvidar da verdade do que ele às vezes me diz, e então tento descobrir pelos meus próprios meios se é verdade ou não o que ele está a dizer, e algumas vezes sei que não é verdade, outras vezes não sei e nunca saberei, e outras ainda, só porque ele não para de me dizer, convenço-me de que é verdade, porque não acredito que ele seja capaz de repetir tão constantemente uma mentira.”

Personagens – duas pessoas num relacionamento

Arco – estabelece a dúvida sobre o que ouve do parceiro, faz uma busca para descobrir o que é verdade, termina por convencer-se que ele às vezes não diz mentiras.

Elementos narrativos – flash back, reviravolta, conflito, repetição

Tempo – ao longo do relacionamento.

Arquíloco – séc. VII a.C.

Algum saio (guerreiro da tribo inimiga) do escudo se orgulha. Sem querer abandonei a arma num arbusto. Salvei minha vida, que me importa o escudo? Perca-se: conseguirei outro igual.

Personagens – Arquíloco e o saio

Arco – perdeu o escudo, salvou a própria vida, eliminou o arrependimento

Elementos narrativos – flash back, suspense, conflito, repetição

Tempo – durante uma batalha

Local – no campo de batalha

Dicas para escrever micro contos

  1. Mostre não conte, este conselho essencial para qualquer narrativa, deve ser seguido à risca para as narrativas curtas.
  2. Atenha-se ao que faz uma narrativa interessante, conflito, cenário, atmosfera, personagens, enredo
  3. Escreva e reescreva sua história diversas vezes, quantas forem necessárias, até que ela só mostre o essencial.
  4. Comece pelo meio, pela parte mais importante ou mais emocionante. Forneça uma guia da história ao leitor.
  5. Escolha o melhor título possível, ele fará parte da narrativa
  6. Deixe um questionamento na última linha que conduza o leitor a reler o conto para entender a mensagem. Ou seja, leve o leitor por um caminho e o empurre para outro.
  7. Coloque a conclusão no meio da história.

Neste link, Lydia Davi conta sobre seu processo criativo e mostra como um dos seus contos foi escrito. Do rascunho ao final.

 

http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2014/07/lydia-daviss-very-short-stories/372286/

Marcadores Neutros de Gênero – x, e, @, i, u – Considerações sobre o uso

O uso de indicadores neutros  x, e, @, i, u de gênero  não é um assunto novo lá fora. Aqui é um pouco mais recente. Não vou falar das polêmicas, problematizar não é o objetivo, o texto traça algumas considerações sobre o como fazer e a parte prática deste fazer. A transformação da linguagem se dá mais pelo uso do que por decreto ou por força. O importante é que a língua muda, quer se aceite ou não. O nascimento do italiano moderno, por exemplo, está ligado à popularidade da A Divina Comédia, que foi escrita em uma das muitas línguas da região, não em latim como era comum.  A língua já fazia parte do povo, era ouvida nas ruas, nas casas, nos órgãos administrativos. Dante não mudou a língua, só colocou no papel o que já existia, solidificou o uso.

A subversão é importante, mas não determinante. O subversivo causa um ferida, resta saber se esta ferida é profunda para formar uma cicatriz permanente. Até que ponto vai a nossa ambição em modificar o que é popularmente aceito sem causar uma sangria irreversível entre o acadêmico/popular e a expressão da igualdade de gêneros? Queremos matar a nossa esperança ou construir uma nova identidade? O esperanto morreu na sua ambição de se tornar uma língua comum, justamente porque não se preocupou com fatores culturais e sociais de identidade dos povos e a importância da linguagem na representação desta identidade.

O Português e o sentido intrínseco do marcador de gênero

A língua portuguesa determina geralmente o feminino e o masculino pelo uso das vogais a e o, respectivamente. Tudo tem gênero. A casa, o carro, o tomate, a batata. Animismo que algema as expressões não binárias. Os marcadores de gênero nos adjetivos, bonita, bonito, desiludido, desiludida ainda podem ser acrescidos de seu esteriótipo.

Generosa – mulher boa, doadora, humilde, provavelmente religiosa e submissa a algum preceito de caráter conservador.

Generoso – homem bom, desapegado, honesto, provavelmente rico que dedica os fins de semana para fazer o bem ao próximo, porque durante a semana trabalha para acumular bens.

Uma atitude generosa nos parece corriqueira, acontecida no dia a dia.

Um ato generoso tem força, exigiu do protagonista desprendimento do ego.

Quantas vezes os escritores preferem usar ato generoso para demonstrar a importância do gesto sem perceber que reforçam esteriótipo de gênero?

Portanto quando usamos um marcador de gênero num objeto, ação ou pessoa estamos ao mesmo tempo reforçando padrões culturalmente aceitos como norma de que a mulher é fraca e o homem é forte. Mas como disse no início, não é o objetivo deste artigo. O objetivo é buscar ideias para a representação não binária.

Marcadores – e, x, i, @, u e seu uso prático

Algumas considerações permeiam todas as classes de palavras, pronomes, adjetivos, substantivos e artigos.

Pronomes – ele, dele, seu, sua, aquela, aquele etc…

E – ele, dele, seu ou sue – A presença do e como partícula masculina nestes pronomes nos impede de usar este marcador como neutro/não binário.

X – elx, delx – quando falamos acrescentamos uma vogal ao final da palavra quando ela termina em consoante, o anglicismo na frase me add no seu facebook se transforma em |me ade no seu facebuque|. Mudamos o som final do l em u, do m em ão. Ao pronunciar o x em elx, delx, aquelx, acrescentaremos vogais ao sons |cs| ou |∫| (símbolo fonético para o som ch): elecs, delecs, elechi, delechi. Impossível com seu e sua – sex, sux!!!! Sem falar da questão dos áudio books e leituras sonoras por aplicativos para cegos, analfabetos, disléxicos etc.

@ – é um novo sinal, atual, moderno, pouco prático sonoramente, seria o mesmo que usar o a ao invés do e. Por que não? Seria uma atitude política, de afirmação mais do que uma atitude prática que conduzisse a uma mudança que fosse aceita por todos a longo prazo. A primeira alteração seria gráfica, um símbolo novo @ no nosso alfabeto. A segunda sonora. Qual sonora? |a|, |at|?

I – eli, deli – dependendo do país e região em que se vive, os sons não diferem em relação ao e. Siu ou sui são similares às onomatopeias de sussurros, alívios, chamadas.

U – elu, delu – em tese parece o mais adequado, na prática ele esbarra na falta de costume com a sonoridade do |u|, vogal menos usada em português. Podemos pensar que eu termina em u e portanto faria todo o sentido usar elu tanto para ele quanto para ela. Seu e sua conservariam o s e o u, su, eliminando tanto o e quanto o a. No entanto, a som |u| é usado para palavras que terminam em o e são masculinas na maioria dos sotaques: pato – |patu|, atrasado |atrasadu|.

Adjetivos e Substantivos

Tendo o que foi dito sobre o uso dos marcadores nos pronomes, as questões do uso do X, I, @ para adjetivos seriam similares. O x e a exclusão de grupos de pessoas. O i e a similaridade com o som do e, o @ e a complexidade de introdução de dois novos conceitos ao invés de um.

E –  usado para designar tanto palavras masculinas quanto femininas, o tomate, o embate, a manchete, a tempestade. A adaptação para o uso desta terminação com substantivos e adjetivos é simples e próxima ao uso que já fazemos do e para complementar o som de consoantes “solitárias” no final e no meio da palavra.

U – como dizemos o |i| é falado no lugar do e, em muitos sotaques, tapete |tapeti| e assim acontece o mesmo com o |u|,  em relação ao o, barco |barcu|, o que jogaria todos os adjetivos e substantivos com a terminação u como masculinos.

Artigos O, A

@ – neste caso específico do artigo, este símbolo tem um quê de unificador o a envolvido pelo o, no entanto esbarramos no problema da dupla complexidade de introdução. A aparência do símbolo também remete mais à androginia do que a não binaridade.

E – analisando o uso que fazemos do e como onomatopeia para chamar a atenção de alguém ou pausar a sentença para pensar sobre o que estamos falando, parece uma solução simples usá-lo também como substitui do a e o.- Ê, fulane, vem aqui! – Estava em casa eeeeeeee não estava na escola quando recebi a mensagem. Porém, e é uma partícula de ligação, o que poderia confundir o leitor ou ouvinte. Será uma continuação do que se fala ou não? Precisaremos exercitar a contextualização.

Exemplos de uso

Irei utilizar o u e o como marcadores para exemplo. Alguns vícios de linguagem são inevitáveis com o uso de marcadores:

Ambiguidade:

Rani e Kieran estavam conversando quando de repente elu pegou o cavalo delu e fugiu. Elu ficou surpreso com o roubo.

Quem fugiu? Com e cavale de quem? Quem ficou surpreso?

Repetição:

Rani e Kieran estavam conversando quando Kieran pegou e cavale de Rani e fugiu. Rani ficou surprese.

Um texto com excesso de repetição se torna cansativo e desestimula a leitura.

Há a questão da própria sonoridade do texto, quem escreve trabalha com símbolos no papel, mas quem lê transforma estes símbolos em sons. Por isso ler o texto em voz alta é um dos conselhos dados aos escritores iniciantes para avaliação do próprio texto. Como avaliar sonoramente um texto se não podemos lê-lo?

 Rani e Kieran estavam conversando enquanto Anna carregava @ arma. De repente Kieran pegou @ cavalo de Rani e fugiu. Rani ficou surpres@ com @ atitud@ d@ menin@. 

A quem se refere o menin@? A Kieran ou Rani?

Marcadores e Representatividade

Rani estava conversando com Kieran quando de repente estu fugiu com o cavalo daquelu. Aquelu ficou surprese.

Além do exemplo acima ter ficado horrível em todos os sentidos. Por nossa memória semântica concluiremos que os dois personagens são de gênero masculino. Pode não ser importante para a trama e pode ser importante se estamos buscando uma literatura representativa. Rani é a personagem do livro O Sino de Rani de Jim Anotsu, uma menina negra. Kieran é o personagem da série Castelo das Águias da Ana Lúcia Merege, um professor.

Num curso para debater a escrita quir  (de queer – peço desculpas a quem não gosta de anglicismo, prefiro o termo por ser abrangente) produzimos textos sem marcadores. Não mencionamos gênero, cor, sexualidade. A classe  era diversa: cis, trans, homos, héteros, não binários, bissexuais, negros, brancos e índios etc.Conseguimos produzir bons textos e colocar as características dos personagens nas entrelinhas. A conclusão sobre o que os textos nos diziam da posição de leitores foi no mínimo triste. Até que as entrelinhas se tornassem claras para os leitores, quase todos imaginaram os personagens como brancos/héteros/masculinos. Não há representatividade ou igualdade na anulação das características dos personagens. Não vivemos uma utopia social e cultural onde todos são iguais. E se queremos que o leitor comum veja esta representatividade e que ela um dia chegue a ser considerada a norma cultural e social precisamos deixar claro de quem falamos.

Para escrever sobre um personagem das minorias precisamos pensar como um personagem de minoria e valorizar as características que representam esta minoria no personagem.

Minhas escolhas (que não precisam ser as suas)

De dois anos para cá tenho buscado algumas soluções. Não dispenso o gênero do personagem se é importante. Quanto aos adjetivos uso o e para fugir da conotação do a e do e. Se vou escrever sobre um personagem assexuado ou não binário procuro soluções de marcadores que passem esta definição. Quando faço um estudo de personagem, penso em como ele gostaria de ser identificado e escolho a representação mais adequada. Não uso marcadores, ou uso e u para os personagens em que o gênero não tem relevância alguma, são figurantes. De qualquer forma não sigo uma regra. Existem mais cores no espectro do arco íris do que sete. Posso estar enganada quanto as escolhas, por isso fico de ouvidos e olhos atentos às palavras de amigues.

Rani e Kieran conversavam. Repentinamente e para surpresa de Kieran, Rani arrancou as rédeas do cavalo de suas mãos e saiu em disparada.

Não é fácil escrever uma história que seja clara, interessante, tenha uma estética própria e personagens com características marcantes. Pensar cada parágrafo dentro de seu próprio contexto e em relação aos anteriores e posteriores. Para não falar do cuidado ortográfico e semântico. O escritor que busca sempre aprimorar-se tem mais um desafio. Adequar seu trabalho ao tempo em que vive.

Para quem gosta de escrever. Este é um momento único. O momento em que o problema que se apresenta é universal, não é particular de uma determinada língua. Quantas possibilidades para pensar e elaborar! Quantas ideias para trocar! Ninguém criou uma fórmula ainda. Somos nós participando deste momento e tendo liberdade para colaborar com uma mudança importante no modo como nos comunicamos.

COISAS QUE AMEI EM BALL JOINTED ALICE DA PRISCILLA MATSUMOTO

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Já havia lido um conto da Priscilla Matsumoto, O Reflexo do Dokkaebi – Boys Love, e gostado do modo como ela dialogava com a psique de seus personagens. Estava empolgada para ler o livro. E agora, livro lido, não estou querendo mais história, a história está completa, cheia e tão bem alojada dentro de mim que vai levar um tempo até poder ler algumas das outras que me esperam na estante. Já abri uns três livros e não consigo passar da primeira página ao perceber que falta o artista por trás das letras. Não são livros ruins, Priscilla é que é boa demais. Vou ainda chorar um pouco o vazio de Frank, por dentro, embaixo da cama, no escuro.

O mundo espelhado por Frank, que não consegue se enxergar, me lembrou um livro da minha adolescência, no final dos 70, chamado Sybil, história real de uma garota abusada na infância que desenvolveu 16 personalidades diferentes. Frank é obcecado por sexo e por caos, coloca obstáculos a todo tipo de amor recebido, enquanto do outro lado do espelho ele é completamente apaixonado por pessoas que estão fora de seu alcance: artificiais, mortas ou lésbicas e eventualmente um gay mais deprimido do que ele.

Não se engane pelo que disse até agora pensando que se trata de um relato introspectivo e denso difícil de ler. Não é. Ball Jointed Alice é um livro de ação, personagens que parecem saídos de um mangá muito louco. A violenta e irracional Emi, traficante que guarda um arsenal em casa, Tay a estilista voluptuosa, misto de pin-up e Mortícia Adams, Shin, o japônes lindão gay, o único “normal” do grupo, alheio ao que acontece quando as coisas ficam feias. E elas ficam muito feias, quando Emi decide usar seu arsenal para explodir o hospício de onde todos fugiram e “contrata” Frank para criar um exército de bonecas Alice.

E sobre Alice, a boneca que dá nome ao livro? Ela é a linha que costura o rasgado Frank novamente, que vai busca-lo no poço onde ele caiu e o resgata da Rainha de Copas. Só chegando ao fim do livro para perceber quem é Alice.

Melhor coisa de Ball Jointed Alice é a interpretação do leitor, os quatro parágrafos acima foram a minha leitura da história, a partir de experiências, do entendimento pessoal das referências de livros, a Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho, a Sybil etc e dos mangás japoneses e coreanos. Alguém que nunca leu Alice (difícil achar quem não, mas vai que) leia primeiro, depois jogue-se no poço de Ball Jointed Alice e morda o biscoito do mundo conturbado e louco de Frank.

Ainda hoje de manhã me perguntei se Frank não era só um espelho.

Onde encontrar: no site da Editora Draco: http://editoradraco.com

 

DICAS PARA O ESCRITOR INICIANTE 30 (acho) – BOLACHA RECHEADA DE PARÁGRAFOS

Vamos comparar o texto/livro a um pacote de bolachas recheadas (você pode substituir a palavra bolacha por biscoito).

Compramos o pacote pela capa, aquelas bolachas “photoshopadas” que parecem crocantes com recheio cremoso, escolhemos o sabor, eu leio um pouco o rótulo como as pessoas leem as orelhas e as resenhas dos livros.

Podemos dizer que a embalagem é a introdução do texto, o que podemos esperar da narrativa. A primeira bolacha é os parágrafos iniciais e irá nos dizer se gostamos ou não do estilo do autor. Lambemos o recheio e sentimos se o texto tem um bom conteúdo, é docinho e desliza na ideia, conseguimos sentir o gosto. Se é mole demais e desmancha muito rápido na boca. Se oferece pouca ligação, na hora da lambida ele se desgruda todo ou mesmo cheio de gordura, mas sem sabor nenhum. A embalagem dizia que o recheio era sabor limão e não sentimos nem o doce do açúcar, nem o ácido da fruta. Se estamos com fome, estamos acostumados a comer qualquer coisa ou se nos delicia vamos até o fim do pacote de uma vez sem arrependimentos.

Regra geral para se comer bolacha recheada: separe as duas metades, lamba o recheio, coma as duas metades. Regra geral da construção de parágrafos. Ideia central ou nuclear vem primeiro, ideias secundárias, que envolvem ou explicam decorrem da ideia central. Há outras maneiras de comer bolacha recheada, mas esta é a básica.

Vou usar uma frase que acabo de discutir com o amigo Giovani Arieira, para explicar o conceito de ideia central:

Ele escreveu:

A escuridão foi rompida por uma lâmpada acesa no canto da sala que iluminava só uma parte do ambiente oposta ao que Gregor se encontrava.

O mais importante nesta sentença é a luz, assim como nas subsequentes protagonista enxerga o ambiente. Mencionar Gregor pelo nome sendo ele o único personagem da trama é gordura desnecessária que tira um pouco o sabor . Reescrita ficou assim:

A luz intensa de uma lâmpada suspensa rompeu a escuridão, iluminando apenas o lado oposto à porta. (o protagonista havia entrado na sala no parágrafo anterior).

Eu gosto de comer as bolachas inteiras, sem separar, conheço quem come as partes e deixa o recheio e outros que raspam o recheio com faca para comer depois. A apresentação de um parágrafo é tão relativa quanto o modo de se comer uma bolacha recheada. Depende do assunto, da complexidade, do gênero, do público leitor etc.

O autor, no entanto, precisa saber gerir os recursos de expressão e desenvolvimento da ideia começando pelo básico.Não existe liberdade sem que se saiba onde estão as amarras que nos prendem, por isso precisamos conhecer e estudar a estrutura das frases e parágrafos para que elas não nos limitem. Um parágrafo mal construído pode sugerir ao leitor desordem de raciocínio, falta de unidade ou objetividade, acabando por enjoar e desinteressar.

Nos livros de técnicas literárias aprendemos que o parágrafo é uma unidade de composição que representa um processo completo de raciocínio dentro da ideia principal. Ou seja, o ponto central e seus contornos, o recheio e suas duas metades. Até que aparece alguém como Roberto Bolaños (não é o Chaves, pois ele gostava de churros não de bolachas) e escreve “Noturno do Chile”, um livro de 120 páginas, com somente dois parágrafos, um que ocupa quase todo o livro e outro com 8 palavras! Não significa que o autor não domina a construção do texto, significa que ele se sente tão livre que pode fazer o que bem quiser que o texto continuará tendo unidade. Muitos consideram “Noturno” sua obra-prima.

Então podemos concluir que a extensão do parágrafo é menos importante do que a coesão com o conteúdo da ideia principal.

De uma forma bem rasteira podemos dizer que o parágrafo tem que ter:

  1. Uma ideia central e principal que puxa o texto e ocupa dois ou três períodos curtos,
  2. O desenvolvimento ou explicação da ideia e
  3. Uma conclusão ou ligação para o próximo parágrafo.

“ 1- Naquela manhã perdi toda a esperança de encontrar Madalena, pois ela havia partido, de forma definitiva. 2 – A nave em que ela embarcou tinha um destino bem diferente da minha, o tempo em que ficaria em estado de suspensão, muito mais longo que o meu. 3 – Percebi que não há está coisa de destino traçado, duas metades da mesma laranja, par perfeito. Se houver o que podemos chamar de para sempre, não se aplicava a mim e a ela.”

 

Desdobramento da ideia em parágrafos

 

Recurso comum e eficiente é desdobrar uma ideia mais complexa em alguns parágrafos. Argumentar sobre ela, narrar um incidente que a explique, descrever o quadro geral, respondendo perguntas sobre o quê, quando, onde, para quem, por quê.

Trecho de O Homem Sintético de Theodore Sturgeon

“Livrou-se da embriaguez. O alcoolismo não é uma doença, mas um sintoma. Há duas maneiras de liquidar o alcoolismo. Uma é curar a causa. A outra é substituí-lo por outro sintoma. Foi esse o caminho escolhido por Pierre Monetre.

Escolheu desprezar os homens que o liquidaram e acabou desprezando o resto da humanidade, porque estava muito próxima daqueles homens.

Gozava com esse desprezo. Erigiu um pedestal de ódio e encarapitou-se nele para escarnecer da humanidade. Isso era, naquela época, a única coisa que o satisfazia. Ao mesmo tempo, morria de fome; mas, como os ricos eram a única coisa que tinha valor para o mundo do qual zombava, gozou também sua pobreza. Por algum tempo.”

Nestes três parágrafos o autor demonstra a passagem do estado de alcoólatra desiludido para sociopata lunático do personagem.

No primeiro ele diz do raciocínio de Pierre para abandonar o alcoolismo.

No segundo, onde ele aplicou esse raciocínio.

No terceiro, o como.

Abra um livro qualquer, um bom livro, escrito por um autor renomado, daqueles que tanto o público quanto a crítica gostam. Também pode ser um escritor profissional como Jay Bonansinga, responsável pela adaptação de The Walking Dead para romance, ou Timothy Zahn que adaptou Star Wars. Dê uma boa olhada na construção dos parágrafos e na sua disposição. Na próxima história que escrever pratique o que aprendeu com suas leituras e veja o quanto sua história ganha em clareza, coerência e principalmente: sabor.

Tomando Críticas e Se Sentindo Bem – Dicas Para o Escritor Iniciante 25

crítica

 

“Nossa! Não é que seja o vestido de noiva mais feio que já vi, mas não combina com você, ele te deixa gorda, minha filha… Agora vamos que a porta da igreja já abriu.

A noiva entra na igreja aos prantos, todos acham que é felicidade.”

Ninguém gosta de receber críticas. Jeito infalível de conquistar pessoas no primeiro contato é elogiando-as, todo bom vendedor sabe disso. Apesar de ansiarmos por elogios, também esperamos por repreensões, não quer dizer que nos preparamos para recebê-las ou nos sentiremos bem ao ouvi-las.

No entanto, se mudarmos nossa atitude e prepararmos nossas mentes para as críticas, poderemos aliviar seus efeitos negativos sobre a nossa autoestima e utilizá-las a nosso favor.

Há duas situações que nos impulsionam a criar, ligadas à resposta que recebemos dos nossos pais e amigos quando mostramos nosso trabalho. Na primeira recebemos congratulações, tapinhas nas costas, afinal eles nos amam, portanto nos admiram para além do que fazemos. Estimulados nos dispomos a ir adiante, trabalhar mais, estudar mais e nos aprimorar para que sua admiração nunca cesse. Na segunda, recebemos indiferença e escárnio das mesmas pessoas e somos estimulados a provar nossa capacidade para que um dia conquistemos sua admiração.

São situações antagônicas, mas as duas nos direcionam a buscar somente admiração e respeito dos outros, não nos preparam para críticas positivas. Inconscientemente a crítica gera sentimentos de falta de amor e rejeição, por que ela está intimamente ligada aos laços afetivos que desenvolvemos e assim a projetamos para o mundo.

Por isso é muito comum reagirmos às críticas negativas com observações como “Esta pessoa não me conhece para falar do meu trabalho desta forma”, “Se esta pessoa não entende o que escrevo,problema dela, se tivesse lido direito entenderia”, “Não gostou, faz melhor que quero ver se consegue”, “#$%&¨%$@” ou chorando, ficando deprimido, abandonando o projeto. Quem nunca teve um professor que gostava de diminuir os alunos e cujas críticas fizeram com que odiasse a matéria que ele ensinava¿

Lembrando o que foi dito em outros capítulos, o escritor escreve para seu público, precisa de leitores. Não escreve nem para si próprio, nem para seus pais ou amigos. É o analista que vai dizer o que está errado com ele antes que o leitor o rejeite, pois pessoas que não te conhecem, não tem laços afetivos com você é que irão ler sua história, ela precisa estar pronta para eles.

Devemos nos preparar com isenção de sentimentos para as críticas, elas são sempre positivas, mesmo quando descem o cacete no que fazemos, mesmo que injustas, nos fazem olhar para dentro de nós mesmos, buscar os porquês da nossa necessidade criativa. Um pai não nega uma injeção ao filho pequeno, mesmo que doa muito, se isso o curar de uma doença. Deixe as emoções de lado e ouça o que outros têm a dizer como se o trabalho não fosse seu.

Só Elogios

Leitores beta são pessoas comuns, que podem ler seu livro antes mesmo da primeira revisão. E darão uma opinião geral sobre ele: se gostaram, se não e por que:

Como escolher seus betas:

Antes de procurar um leitor crítico ou agente literário (as vezes as duas funções são feitas pela mesma pessoa), tente obter alguns feed-backs de leitores seus conhecidos e amigos (desconhecidos só depois da obra registrada). Alguns requisitos para escolher bem:

 

1 – Se gosta de ler, tem o hábito da leitura. Não adianta entregar seu livro para aquela pessoa da faculdade de quem você está a fim só para que se admire com o fato de você ter escrito um livro.

2 – Se faz o gênero desta pessoa, ela gosta de romances e escrevemos terror, é melhor procurar entre os que gostam do gênero, eles lhe darão um retorno condizente com o conteúdo do seu livro.

3 – Se a pessoa tem disponibilidade para ler até o fim e apontar os erros. Seus amigos próximos vão te elogiar porque gostam de você, irão justificar seus erros durante a leitura com a lente da amizade. São aquelas pessoas que vão dizer: “Nossa! Demais! Adorei!” – mesmo se tiver uma porcaria. Isso insufla o ego, mas não melhora seu trabalho.

4 – O melhor beta é aquele que também escreve, por isso é bom formar um círculo de amigos escritores com quem trocar ideias e originais.

Não entregue seu original para muita gente, uma a três pessoas bem escolhidas são o suficiente. Se os leitores se sentem incomodados com personagens ou com as cores que demos a eles, se todos os apontam como clichês, machistas, preconceituosos, os vilões são fracos e as dúvidas, muitas. Jogue tudo fora antes mesmo de passar na mão do crítico e recomece.

 

Antes de procurar uma editora ou publicar seu livro e depois de registrado, tente obter o máximo de respostas às leituras. Ao escolher o leitor beta verifique:

1 – Se gosta de ler, tem o hábito da leitura. Não adianta entregar seu livro para aquela garota/o da faculdade de quem você está afim só para que ela/ele se admire com a sua obra.

2 – Se  seu livro faz gênero deste leitor. Ela gosta de romances e escrevemos terror, é melhor procurar entre os que gostam do gênero, eles lhe darão um retorno condizente com o conteúdo do seu livro, já leram outros e podem apontar os problemas.

3 – Se a pessoa tem disponibilidade para ler até o fim e apontar os erros. Se o único retorno que espera receber é “gostei” ou “não gostei” não ajudará no esforço em aprimorar o que fazemos.

 

Leitor Crítico

Antes da revisão e copidesque do seu livro, entregue-o a um leitor crítico. Para escolher, verifique se ele já trabalhou com leituras do seu gênero, se puder solicite informações de escritores que usaram seus serviços. Este profissional vai vasculhar seu livro atrás de falhas mais profundas do que o copidesquista, embora na análise das partes as duas funções se confundam. Sua função principal é analisar o todo e dar opiniões sobre vários aspectos:

Título – se condiz com a história.

Estrutura – analise do gênero literário e como o livro se situa nele.

Enredo – se foi bem desenvolvido e de que maneira.

Cenas, Cenários, Diálogos – quais os pontos positivos e negativos.

Tensão emocional – os micro clímax e o clímax são percebidos corretamente

Personagens – se são carismáticos e tem personalidade própria

Discurso – se o livro é equilibrado mantendo a mesma característica discursiva ao longo do texto e se há problemas entre contar/mostrar

Análise Estilística – se o autor é elegante, profissional ou não tem estilo próprio.

Elementos Simbólicos – emprego correto

Vícios de Linguagem – recorrência

Final – se o leitor terá uma reação positiva, mesmo em se tratando de parte de uma trilogia, pois o livro tem que fechar o arco narrativo.

Explicada a complexidade da análise do leitor crítico, você deve estar pensando que é um negócio caro. Sim, com certeza. Entenda o seu livro como o cachorrinho ou gatinho a quem você ama como parte da família e que de repente fica doente, você não mede esforços para pagar a conta do veterinário nem que seja em 12 vezes. Seu livro já nasceu doente e quanto mais iniciante o escritor é, mais fraco o livro, então faça sua poupança à medida que escreve para não pesar no final.

Como tirar o melhor proveito das críticas

O leitor crítico é mais incisivo, portanto o escritor tem que ser mais aberto às mudanças e interferências, e consequentemente às opiniões que possam diminuir a sua autoestima. Ao receber a avaliação, baixe a bola, encare a realidade e mãos à obra. A opinião do leitor crítico não é um ultimato, se sentir-se inseguro busque outra opinião. Não entenda como um carimbo de aprovação ou recusa, a leitura crítica é muito mais uma alavanca para impulsionar o próprio nível crítico do autor e melhorar seu desempenho.

Preste bem atenção em tudo o que o leitor crítico tem a dizer, não descarte nenhuma sugestão. No entanto o livro é seu e você pode muito bem mudar. Faça uma análise dos conselhos recebidos e no caso de sentir-se desconfortável com alguns deles, questione-se se a mudança lhe fará bem. Por exemplo, o crítico/leitor diz que uma determinada passagem é desnecessária, mas nós gostamos do que está escrito, pois tem uma poética própria, há várias opções: guardar para outra obra, torna-la importante, arranjar outra posição em que ela seja relevante.

Se o leitor/crítico não entendeu uma passagem que está clara para nós, pode ser por que a passagem não está bem resolvida. Fazemos um comentário pequeno sobre uma passagem importante e não complementamos esta informação, para nós que estamos dentro da história parece que todos irão entender, mas não é o que acontece. Insira Informações.

Se o crítico e os leitores se sentem incomodados com personagens ou com as cores que damos a estes personagens, podemos avaliar a necessidade da mudança e verificar se na hora de delinear o personagem notamos este desconforto ou se ele é proposital ao caráter do personagem, mas não ficou claro. Adapte.

Não se incomode se tiver que injetar coisas novas, costurar lacunas, amputar partes desnecessárias. Faça o que tiver que fazer para que seu livro sobreviva e passe a sua mensagem de forma que seus leitores entendam.

Agente Literário

O agente literário é um leitor crítico contratado por uma editora para avaliar os originais recebidos. E acredite, são muitos! E por trás de cada um deles há um escritor esperando virar estrela.

Os bons agentes são pagos pelas editoras e não são de fácil acesso. Mandar seu original direto para algum deles sem que seja solicitado é destinar seu livro para a prateleira coberta com pó do esquecimento. Para não dizer lixeira. Portanto, é preciso que o agente encontre você. Como? Toda vez que você encaminhar livros para a editora é o agente que receberá sua oferta e, antes de ler, ele avaliará entre outras:

1. A necessidade do mercado em relação à sua proposta literária,

2. A sua carreira (participação em concursos, contos publicados, formação, blog etc.),

3. O seu posicionamento profissional através de feed-back dos veículos nos quais já tenha publicado. (Não é bom discutir nas redes sociais, com leitores e outros autores.)

Se depois desta análise inicial concluir que você tem algum potencial ele lerá o que escreveu. Você pode também ser indicado por alguém para este agente, mas não se iluda, com certeza passará pelo mesmo processo de avaliação prévia. Prepare-se. Algumas dicas para uma boa apresentação sua e de seus originais estarão num próximo capítulo.

 

 

 

A Profissão de Escritor – Dicas Para o Escritor Iniciante 13

Mortimer room

Encontrei a casa dos meus sonhos. Sempre quis um lugar só meu, onde eu pudesse construir um futuro. Paguei barato. O problema é que tem um fantasma morando lá dentro. Vou desistir? Não, vou enfrentá-lo e vencer esta batalha, mesmo que passem anos até que seu plasma se desintegre completamente.

Qualquer artista sabe o quanto pode ser demorado o sonhado “reconhecimento”. Alguns desistem de lutar, outros adiam a luta até que encontrem tempo em suas rotinas para enfrentá-la (este foi meu caso), outros tombam antes de chegar ao final de sua saga.

Inúmeros são os exemplos de escritores que chegaram ao sucesso depois de mortos. E mesmo aqueles que têm reconhecimento não têm muito dinheiro. Se você escolheu ser escritor, dinheiro deve ser sua menor preocupação. Não que a indolência deva arrebatá-lo. Tenha outros objetivos em mente na sua luta: aprimoramento, sociabilidade, amor.

Então não dá para espantar o fantasma e sobreviver? Claro que sim basta seguir estas regras:

1.  Estude – acadêmico ou não, o estudo é sempre essencial. Se optar por fazer uma faculdade, existem cursos fora do Brasil voltados exclusivamente à formação de escritores, portanto a concorrência é muito séria. Não tendo disponibilidade para fazer um curso no exterior, pode escolher entre jornalismo, letras, direito, ou outra em que a palavra escrita seja aplicada com correção. Há várias oficinas com preços módicos, oferecidas por profissionais, além de aprender você cria laços com outros aspirantes a escritores.

2.  Pratique – escreva de tudo, sobre tudo. Não se atenha somente aos livros de fantasia ou novelas policiais ou o gênero que preferir. Comente livros, faça resenhas, resumos. Escreva crônicas, contos, poesia etc.

3.  Compartilhe – encontre seu grupo e compartilhe seus conhecimentos e críticas.

4.  Siga diligentemente quanto as instruções 1, 2 e 3 antes de jogá-las fora. (Adoro Matsuo Basho, poeta e iluminado japonês)

Se você quer fazer da escrita uma profissão, não fique esperando que o fantasma venha até você, vá até ele. Trabalhe com constância. (Como já citado no Dicas para o Escritor Iniciante 2 – Método e Disciplina).

No Brasil o mercado editorial voltado à profissão de escritor ainda é muito incipiente se comparado a outros países, mas vem apresentando um nítido crescimento nos últimos anos, nos EUA e Europa circulam dezenas de revistas especializadas, os jornais têm suas colunas dirigidas a este público, muitos livros são publicados.

Recomendo um livrinho sobre a vida prática do escritor (já recomendei dois sobre teoria – Quero Ser Escritor 3).

– Você já pensou em escrever um livro? – Sonia Belloto – (está esgotado, mas a 5ª. edição virá em breve).

O escritor pode desenvolver inúmeras atividades que ao final do mês possam pagar o aluguel e a conta do supermercado. Traduções, revisões, leitura crítica, artigos para jornais, revistas e blogs, escrever textos técnicos ou publicitários, ser um escritor-fantasma etc.

Mãos à obra.