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ESCREVENDO PERSONAGENS LGBTIA+

Existe uma onda de interesse por ficção especulativa nacional, feiras e eventos acontecem toda a semana com um bom afluxo de leitores, pessoas interessadas em se ver representadas nos livros e coletâneas. Entre os escritores de ficção especulativa nacional cresce também a inclusão de personagens que fujam de protagonistas masculinos, brancos e cis-héteros. Personagens de diferentes etnias, origens, orientações, gêneros passam a interessar como protagonistas.

Não estou usando a palavra onda como coisa passageira, prefiro entender como uma tissunami, que arrasa velhas estruturas para que novas possam nascer e ocupar o espaço de maneira mais criativa e justa.

Não é meu lugar de fala tecer considerações sobre como seria incluir personagens negras, pessoas com necessidades especiais, indígenas etc, para escrever personagens assim conto com ajuda de leitores sensíveis. Mas como pessoa quir acho que posso falar um pouco de como vejo os personagens LGBTIA+ nas ficções que leio e de como gostaria de vê-los.

Em primeiro lugar cito alguns problemas com personagens LGBTIA+ em narrativas. Devo confessar que já usei de alguns clichês quando ainda não tinha coragem de me expor. Ou seja, este tipo de construção equivocada de personagem LGBTIA+ em narrativas não é exclusividade de pessoas cis hétero.

O QUE NÃO FAZER                                                                              

  1. Personagem secundário que não faz falta

Personagem LGBTIA+ amigue da personagem principal, que serve só para ajudar  protagonista cis hétero a parecer uma pessoa flexível e antenada com o seu tempo. A pessoa LGBTIA+ geralmente morre, e o sofrimento é só uma escada para o leitor perceber o quanto a personagem cis hétero é humana. A pessoa LGBTIA+ é apagada pela supremacia de personagem hétero, ou pior, salva por personagem hétero.

Personagem LGBT engraçado. Para quebrar a dramaticidade, “colorir” (como odeio essa palavra) a trama por assim dizer. Geralmente é afeminado ou travesti, ou a lésbica bush que conserta caminhões (naves espaciais, no caso) ou é soldado, orc etc. Toda a força do estereótipo que o autor conseguir colocar para provocar risos no leitor. Personagens não são tridimensionais, não acrescentam à trama nada além de uma quebra pontual de narrativa, não servem como representação ao leitor LGBTIA+.

Personagem LGBTIA+ invisível. O pior dos casos, com o único propósito de passar pano para narrativa não inclusiva. O autor(a)(e) ou editora disfarça o texto para alcançar um público maior ou gerar críticas positivas da “crítica antenada”. Personagem que não é diretamente amigue de ninguém, que aparece numa parte mínima da narrativa e que poderia ser um cachorro e não faria falta alguma.

2. Personagem principal não humano

Por falar em pisar em ovos. Considero ofensivo quando todos os personagens principais são humanos, héteros, cis, e os LGBTIA+ são não humanos ou são alienígenas. Vivendo numa elfalândia qualquer ou num planeta muito muito distante.

Se todos os personagens são fantásticos ou alienígenas, ainda existe uma passabilidade para o fato dos LGBTIA+ não serem humanos, no entanto é preciso observar os estereótipos mencionados no item anterior. Por que aquele núcleo de personagens diversos existe? Qual a função deles na trama? Se é só para ser amiguinhe de protagonista cis hétero, não escreva.

As pessoas LGBTIA+ são geralmente excluídas de narrativa por serem invisíveis no sentido de que não são a “norma social e cultural” aceita, como disse incluo uma parcela da população LGBTIA+ na questão que também não se enxerga como parte da normalidade. LGBTIA+ existem, sempre existiram e sempre existirão na História da humanidade, com diferentes graus de tolerância dependendo da sociedade, da época e da religião, então não adianta nada a chiadeira de intolerantes, LGBTIA+ são parte da normalidade, parte da multiplicidade de representações humanas.

Quando uma pessoa não escreve personagens LGBTIA+ como parte da normalidade é porque não os enxerga assim, foi condicionada a não perceber a existência dos LGBTIA+. Autora, autor, autore que diz que escreve os personagens sem pesar essa questão, que usa da “liberdade artística”, percebe-se como o centro do mundo e escreve basicamente sobre seu umbigo. Nada errado escrever sobre o próprio umbigo, mas aconselho ler O Quarto de Jacob de Virgínia Woolf, onde o personagem Jacob é narrado de outros pontos de vista, menos o dele.

Então quando escritores/as inserem um personagem LGBTIA+ de raça diferente – alienígena, orc, elfo, duende – num ambiente predominantemente humano, acabam tirando a humanidade da representação do personagem, haja vista que nenhuma representação, nenhuma história é sobre alienígenas, pois nunca tivemos contato com um, ou seres fantásticos, pois eles fazem parte do imaginário, toda ficção especulativa é de certa forma alegoria da nossa própria realidade, do nosso momento histórico, da nossa vivência. Ao fazer do personagem um ser não humano em meio a humanos a “norma” aceita continurá vigente. É como se dissessem: “Noutro planeta/mundo tudo bem existirem LGBTIA+, no nosso não.”  

OBS.: Antes que alguém cite A Mão Esquerda da Escuridão, Ursula K. Le Guin escreveu esse livro no século passado, cinquenta anos atrás, os tempos são outros, estamos quase na terceira década do século XXI.

3. A catarse do sofredor ou vilão

Personagem LGBTIA+ para provocar ódio ou lágrimas nos leitores são clichês absolutos. A mulher trans prostituta que sofre agressão e acaba morrendo no meio da rua, viciada que troca o corpo por substâncias químicas, o gay que é expulso de casa e também se prostitui e usa drogas. LGBTIA+ psicopata que é reprimide pela mãe ou abusade pelo pai e se torna um serial killer. Um exemplo clássico é o serial killer do Silêncio dos Inocentes.

A despeito da realidade cruel em que vivemos: dois LGBTIA+ entre 8 e 60 anos são assassinados por dia no nosso país, a maioria das mulheres trans são prostitutas, crianças e adolescentes LGBTIA+ são constantemente vítimas de abusos por parte de parentes e pessoas próximas, grande parte dessas pessoas acabam vivendo na rua em condições degradantes, não é isso que essas pessoas esperam para suas vidas. Não é o que querem ver nas histórias ficcionais. Por que a ficção tem que espelhar a dor? A alegoria dos problemas vividos pelos LGBTIA+ pode ser diferente, pode ser lidar com um rebanho de mamutes com presas de ouro ou uma nave espacial quebrada.

COMO ESCREVER UM PERSONAGEM LGBTIA+

A primeira pergunta a se fazer é porque escrever um personagem LGBTIA+, se é só para parecer maneiro, não faça. O primeiríssimo passo é reconhecer e entender as pessoas LGBTIA+ como parte da sociedade, da sua própria comunidade. Entender que você, escritora/r/e, poderia ser um LGBTIA+ e nada mudaria, ou isso é o que deveria acontecer se a sociedade fosse justa e igualitária. A segunda pergunta é para quem estou escrevendo? Se não revelar que personagem é LGBTIA+ no começo da trama e deixando a “surpresa’ para o meio ou o fim da história a representação atingirá pessoas hétero cis, porque a pessoa LGBTIA+ não se verá representada desde o início. Pergunte-se se está escrevendo para incluir personagens diverses para hétero cis ver ou porque LGBTIA+ têm que ser representades. Você revela que sua personagem cis hétero é cis hétero? Por que não? A falsa normalidade que permeia nossas relações é mais limitadora que reguladora de nossas relações sociais, precisamos pensar que tipo de relações queremos com outras pessoas, antes mesmo de pensar em representá-las.

1º Passo

Converse com uma ou mais pessoas do espectro que quer representar. Pergunte como uma pessoa trans entende o próprio corpo. Pergunte a uma pessoa assex quando ela se descobriu. Pergunte das descobertas, das constantes descobertas. Nossa representatividade de gênero e parte da nossa sexualidade são construções sociais feitas de tijolos de culpa, repressão, dúvidas e acertos colocados um sobre o outro ao longo de nossas vidas. Somos seres razoavelmente longevos, décadas de impermanência aguardam cada criança que nasce.

2o Passo

O que é a normalidade? É uma pergunta que não deveria existir, mas no mundo ficcional tradicional, não experimental ou filosófico, ela é crucial para desenvolver um bom personagem LGBTIA+.

Uma das colocações mais obtusas na hora de incluir personagem diverso é dizer literalmente a diversidade de personagem.

“Fulano era negro” quando não se diz qual a etnia de outres personagens.

“Fulana era lésbica” quando não se diz qual a orientação sexual de outres personagens.

Quer dizer, esse personagem não é igual a outres. É diferente, não pertencente, não incluído na “norma”.

Como fazer para não dizer que a pessoa é lésbica? Mencione uma namorada, inclua um comentário sobre uma pessoa bonita, desenvolva um romance entre as duas. Exercite formas não diretas de dizer, volte ao primeiro passo e converse com alguém do espectro LGBTIA+.

“A pessoa pegou a arma com a mão esquerda e fez mira.” Eu sei que a pessoa de quem se escreve é canhota, não preciso dizer. “A pessoa, que era canhota, pegou a arma com a mão esquerda e fez mira.”

Escolha uma profissão para sua personagem lésbica que não seja ser caminhoneira, que não seja um clichê ou uma profissão masculina, afinal uma coisa não tem nada a ver com a outra, se não consegue pensar na sua personagem lésbica de outra forma volte ao primeiro passo.

3º Passo

Sexualização de personagem LGBTIA+ é uma questão delicada, se só o personagem LGBTIA+ é sexualizade, então temos um problema, se personagem faz parte de uma sociedade edonista, não há nenhum problema. Outra vez o primeiro passo é importante, ao conversar com diferentes pessoas LGBTIA+, escritor/a/e perceberá que não muda nada em termos de intensidade ou falta de intensidade em relação às diferenças dentro do espectro para uma pessoa cis hétero, são questões humanas individuais, cada indivíduo entende de sua manifestação da sexualidade.

Será que personagem LGBTIA+ está reproduzindo machismo, misoginia ou misândria?  Esta pergunta deve ser feita e refeita. Personagens gays que odeiam vagina e lésbicas que odeiam pênis, por exemplo, são no mínimo transfóbicos.

4º Passo

Existem quatro pontos básicos a serem observados ao escrever sobre personagens LGBTIA+. 

  1. Orientação de gênero – em 2015 a cidade de Nova York nos EUA, reconheceu 31 gêneros e expressões de gênero diferentes (matéria abaixo). Uma pessoa cis é uma pessoa que se reconhece do gênero designado – por outra pessoa como pais, responsáveis, força da lei – ao nascer, que se sente confortável com essa designação. Pessoas trans são pessoas que pertencem a outro alinhamento de gênero, feminino, masculino, não bináries, diferente daquele que ela foi designada. As pessoas trans não necessariamente passam por alinhamento, há trans homens de seios e trans mulheres de pênis, a representação física faz parte da expressão de gênero.
  2. Expressão de gênero – como a pessoa gosta de expressar seu gênero. Por exemplo, aquela menina que só usa “roupas de menino”, pode ser hétero e cis, só tem uma maneira diferente de se expressar. Lembrando que a expressão de gênero passa por convenções sociais.
  3. Orientação sexual – por quem a pessoa se atrai fisicamente, ou por quem não se atraia no caso de assexuais. Héteros, gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais etc.
  4. Orientação romântica – por quem a pessoa se atrai romanticamente ou intelectualmente. Por exemplo, uma pessoa bissexual pode sentir-se atraída romanticamente por um determinado gênero e fisicamente por outro.

Num dos meus contos escrevi personagem de gênero não binárie fluíde, representação feminina, orientação sexual não romântica e sexual bissexual.

COMPLICAÇÕES

Há duas formas de se pensar na inclusão de personagens LGBTIA+. A primeira se refere ao tempo que uma pessoa cis hétero terá que dispensar à pesquisa, às dificuldades para entender e construir um personagem diferente, o que algum autor/autora pode achar um pouco cansative. A segunda se refere a não ser preguiçose e ser criative, aproveitar esse leque imenso de possibilidades de escrever personagens ricos e diferentes que os espectros LGBTIA+ e os outros recortes dentro desse espectro, étnicos, por exemplo, nos oferecem.

Links para artigos e podcasts relacionados

Nesse blog

https://claudiadu.wordpress.com/2016/09/05/pequenas-consideracoes-sobre-os-pronomes-de-genero-x-e-i/

https://claudiadu.wordpress.com/2019/08/06/marcadores-de-genero-ii/

Nova York reconhece 31 gêneros e representação de gêneros (em inglês)

https://www1.nyc.gov/assets/cchr/downloads/pdf/publications/GenderID_Card2015.pdf

12 Fundamental to write the others (and the self) (em inglês) Há uma tradução nesse blog

Diversidade em Star Trek – HQ da Vida – Part 1 e 2

https://www.spreaker.com/user/halfdeaf/hqpedia-07-diversidade-em-star-trek-part

Orlando e o Escuro da Coragem – Ana Lúcia Merege

 

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Quem disse que adultos não leem infato juvenis? Na verdade eu comprei Orlando pensando nos meus netos, sabendo que eles demorarão pelo menos uma década para ler, afinal eu nem tenho netos. Foi só desculpa.

Mas para você que gosta de infanto juvenis ou tem crianças na família, recomendo muito Orlando, que fala da coragem de abandonar o egoísmo em favor do grupo, mesmo assim, saber confrontar os amigues quando necessário, perceber os próprios erros e aprender com eles.

Orlando é um menino de 12 anos que vive em Athelgard, a terra de fantasia criada pela autora Ana Merege. O irmão mais velho de Orlando é bom de briga, enquanto Orlando prefere a companhia de um velho mago e treinar seu falcão vesgo para a caça. Quando o rei recebe um convite para enviar um dos filhos a uma justa no Reino das Colinas Negras, ele envia o mais velho, mas Orlando acaba sendo confundido com o irmão e sendo levado por um caminho secreto ao reino distante. Orlando será obrigado a enfrentar competidores mais velhos e experientes que ele para conseguir o Escudo da Coragem, uma arma mágica e indestrutível e honrar seus pais e reino.

A história surpreende ao fugir do clássico “herói auto suficiente que não tem medo de nada.” Orlando possui poderes mágicos, mas ainda não está treinado para usá-los, e a disputa se revela muito mais do que uma demonstração de força. É preciso inteligência e principalmente trabalho em grupo para superar os obstáculos. Esta é a melhor parte do livro, além do fato de Ana Merege ter uma escrita limpa e envolvente. A medida que Orlando avanças nas etapas da competições, aprendemos algumas lições valiosas: aceitar ajuda quando necessário, discutir as possibilidades e ouvir os outros, seguir os instintos, mas só quando os resultados decididos pelo grupo não derem certo, tomar decisões difíceis e se colocar em posição de liderança quando for exigido.

O livro é bem pequeno, como qualquer infanto juvenil, com pouco espaço para desenvolver a narrativa, Ana Lucia habilmente consegue criar personagens atraentes e carismáticos para o leitor, uma história cativante, cheia de ação e acontecimentos inesperados, e um gostinho de quero mais no final da leitura. Falo sério, quero mais da pequena Ana além das aventuras na trilha secreta (outro livro infanto juvenil da série) e do pequeno Orlando e seu falcão vesgo.

Link para compra

Orlando e o Escudo da Coragem, Ana Lúcia Merege

Um pouco mais sobre o livro

Como escrevi Orlando e o Escudo da Coragem

Um pouco mais sobre a autora

http://castelodasaguias.blogspot.com/