Extensão

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Sai do escritório naquela segunda feira ponte de feriado às 11 da noite. Quando embarquei no metrô me senti completamente vazio como aquele vagão. A hora do rush dos dias normais era mais acolhedora.

Assim, acuado pela ausência das pessoas para quem aqueles bancos frios foram destinados, encolhi-me no último assento, parede às minhas costas e janela com vista para o túnel escuro.

Estava exausto por conta do longo dia e com um pouco de dor de cabeça, por isso meu celular descansava  no fundo da mochila. Pressionado pela sensação incomoda, percebi que era necessário tirar meu companheiro de seu esconderijo e me desvencilhar desta solidão. Comecei a jogar “Samurai Battle” e ouvir minha banda favorita.

Quando o trem parou na estação seguinte levantei a cabeça para ver se o mundo continuava deserto.

Ninguém na plataforma, ninguém nas escadas rolantes, nenhum segurança, soou o alarme da partida e voltei para o terreno imaginário do jogo, povoado de guerreiros voadores, dragões e vilarejos bidimensionais. Perdi e na pequena tela apareceu “fim de jogo”. Suspirei e estiquei o pescoço e as costas me preparando tentar novamente.

Parado, em frente à última porta, vi um rapaz de preto, carregando uma mochila. “Será que me distrai? O trem deve ter parado na próxima estação e alguém embarcou nem percebi.” Olhei para os indicadores em cima da porta. Não, ainda estava no percurso, a próxima estação piscava inalcançável. Será que ele estava sentado em algum lugar? Antes não me sentia aliviado por estar sozinho e menos agora com esta companhia insólita. O desconforto era bem maior. O sujeito estava de costas, apoiado no ferro lateral da última porta, no ponto oposto do vagão, quinze metros nos separavam. Usava uma jaqueta com capuz que cobria a cabeça, preta como a mochila, as calças e as botas. Atravessado no suporte externo da mochila havia um cano longo. Pensei que podia ser um estudante de desenho ou arquitetura e seus trabalhos, um artista. Menos mal. Todos acham os artistas mais sensíveis, humanos. Será? Embora aquele cano fosse muito fino para carregar folhas enroladas. Dei de ombros, muita fabulação para uma simples viagem de metro. Resolvi voltar para o meu celular.  Foram dois segundos ou menos, dois toques no celular, se tanto. O sujeito estava na minha frente. Mascara negra, levantando a catana afiada para cortar minha cabeça.

Nu e com frio acordei, sem lembrar ter dormido. Envolto por uma sala de aço polido, cujas paredes se diluíam numa confusão espelhada, sem arestas, portas e janelas. Estava enrolado como um feto, coberto de líquido amniótico. Sufoquei e regurgitei. Respirei e doeu, o ar metálico da sala preencheu meus pulmões. Então coloquei as mãos na garganta. Imbecil! Lógico que estava com minha cabeça no meu corpo. Eu tremia, mas não saberia dizer se era do frio que me cortava os ossos ou do medo, talvez de ambos. Chacoalhava como um liquidificador triturando gelo.

Lembrei de minha mãe e de ajudá-la a fazer gelinho para vender na saída da escola, dos sucos preparados tarde da noite, único horário disponível. Da reclamação dos vizinhos com o barulho. Moramos só eu e ela numa casa de cômodos, no longo quintal moram mais cinco famílias. Quero minha mãe, não quero ficar nesta sala. Fiz um apelo abrindo os pulmões, a voz saiu esganiçada e aguda:

– SOU FILHO ÚNICO. MINHA MÃE PRECISA DE MIM.

Silêncio. Comecei a chorar desesperadamente, pensando no que poderia ter feito de errado, falado de errado. Tentei remontar meus passos. Primeiro os últimos momentos no trem, então os últimos dias. Seria um castigo? Eu não saia muito, gostava do meu computador e de meus amigos da rede. Quase toda a minha interação era online. Não tinha amigos na escola, passava horas comigo mesmo, nunca “mestrei” RPG, nem sequer ganhei, fui sempre o perdedor. Também não sabia o que significava discutir. Se alguém me jogava pedras eu as recolhia pacientemente e as transformava em pó com minha visão de super-herói gentil. Nem adulto era ainda, para dizer a verdade, só fui trabalhar naquele feriado por ser meu primeiro emprego, acabei de fazer dezesseis.

– MINHA MÃE PRECISA DE MIM. POR FAVOR! OH MEU DEUS! POR FAVOR!

Fiquei em pé e meu corpo parecia desacostumado à gravidade. Cambaleie até que bati na parede fria. Fui tateando em volta tentando achar uma saída. Havia reentrâncias, partes côncavas e convexas, nenhuma saída, nem o meu reflexo. Eu estava lá ou não estava?

– Você está em casa.

A voz veio de trás de mim, me virei e o mascarado estava lá, com suas roupas negras e sua catana. Por onde ele entrou? Se ele está aqui tem que ter uma porta! Tentei me aproximar para ajoelhar aos seus pés e implorar para me levar de volta, pedir desculpas por qualquer coisa. A cada passo que dava ele ficava mais distante. Apertei o passo, pois a sala não me pareceu tão grande a despeito da falta de esquadro, da perspectiva deturpada, era pouco maior, ou pouco menor do que aquele vagão. Então corri como um desesperado, e o sujeito desapareceu na distância e acertei minha cara na parede fria.

Chutei, gritei, chorei, implorei por horas a fio, assim me pareceu. Então arranhei as paredes, que ficariam incólumes de qualquer forma, foi tanta fúria, que feri meus dedos e eles começaram a sangrar, a pele da ponta dos dedos ficou descamada, em carne viva, mas não sentia mais dor ou frio. Sentia raiva, uma profunda raiva de tudo, até de mim mesmo, por entrar naquele vagão sozinho. Devia ter esperado na plataforma. Devia ter voltado para casa de ônibus, devia ter ficado em casa com minha mãe, devia ter recusado o emprego.

Perdi as forças de tanto esmurrar o chão. Gritei até que minha voz se foi, derrotado, voltei à posição fetal. Talvez se eu colaborasse, eles me soltariam. Se fosse uma pessoa boa e receptiva, parasse de gritar e chorar feito uma criancinha eles também seriam bons comigo. Adormeci.

Quando acordei não havia mais ferimentos em minhas mãos, hematomas nos meus punhos e ombros e joelhos, nada que pudesse dizer da fúria anterior. Nada, nem o sangue coagulado manchando a pele, nem o líquido amniótico empoçado no chão onde estive quando cheguei. Busquei aquela coragem que nunca tive, respirei fundo e sussurrei:

– O que querem de mim? O que posso fazer por vocês?

Cruzando o espaço onde ele não existia veio o homem de negro e sua catana, da distância de ser um ponto até estar em pé diante de mim. Eu ainda rastejava. Podia tocar-lhe as botas se quisesse, beijar-lhe os pés. Não me atrevi. Abaixei a cabeça e novamente fiz minha oferta:

– Como posso ajudar?

– Você está em casa.

Esta não era minha casa, não a que eu queria, ali não estava a cama que dividia com minha mãe, desde que meu pai nos abandonou, o meu canto no quartinho escuro e sem janelas, com meus bonecos, o computador doado pela ong e minha pequena coleção de mangás. Também não cheirava como minha casa, mistura do perfume da minha mãe e de suco artificial. Mas não ousei discordar do homem que supostamente cortou minha cabeça e caminhava entre dimensões.

– Levante-se.

Diligente, dei um pulo e me pus em pé, como um soldado. Espinha reta, olhos fixos por cima de seu ombro. Destruído por dentro, de aço por fora.

– Olhe.

Ele abriu a boca e ao invés de dentes eu vi o universo dentro dela, as galáxias e nebulosas, os sistemas solares, o nosso sistema, a Lua e a Terra. Meu país. Meu periférico bairro na imensidão de luzes desta grande metrópole, minha rua, a única janela de minha casa e minha mãe. Vi-me entrando pela porta, meia noite e dez, marcava o relógio da cozinha. Minha mãe ainda acordada acendia o fogo para esquentar a janta, deu-me um beijo e perguntou como foi meu dia, como fazia sempre, tirando a minha mochila das costas. Era o mesmo dia, pois usava as mesmas roupas e sobre a mesa estava o caderno com desenho inacabado que deixei na noite anterior. Só eu não estava realmente ali. Eu estava aqui neste lugar infinito, cercado pelo incerto. Quem era aquele que ocupava o meu lugar?

O sujeito fechou a boca.

– Aquele é você.

– Nã….

Quis negar, mas não pude. Os seus olhos negros tinham o brilho do metal da sala e o desafio da batalha e neles percebi o meu destino.

– Venha comigo, Renato. Pois uma guerra nos espera.

Entregou-me a catana com o símbolo da fênix bordado na lâmina.

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