Monthly Archives: November 2015

12 FUNDAMENTOS PARA ESCREVER O OUTRO – TRADUÇÃO DO ARTIGO DE DANIEL JOSÉ OLDER

“Todo o tempo que despendemos escrevendo sobre o outro, nós negligenciamos o verdadeiro problema que é escrever nós mesmos. Os privilégios sobrevivem na invisibilidade e no silêncio. Privilégios também nos cegam a respeito de quem nós somos e de como somos vistos pela sociedade à nossa volta, e não percebemos que possuímos um escudo que nos dá proteção extra no jogo da representação social.”

 

Estamos sempre escrevendo o outro, e sempre escrevendo nós mesmos. Nos deparamos com uma equação quase impossível de resolver toda vez que contamos histórias. Quando criamos personagens com origens e experiências diversas das nossas, nós estamos na verdade contando essencialmente suas histórias sob a nossa própria perspectiva.

Nós nos deparamos com discussões acaloradas sobre escrever o outro – a intersecção entre poder e identidade, privilégio e resistência –  em seminários, nas seções de comentários dos artigos e blogs, na rede social, em salas de aula. Então, como podemos escrever respeitosamente na perspectiva do outro? Aqui estão 12 orientações para iniciar este processo:

1. Pesquisar é só o começo e ainda é muito pouco

Quase todas as conferências, dissertações, blogs e seminários que tenho visto a respeito de escrever o outro podem ser resumidas em “faça sua lição de casa”. Deduz-se pelo não dito que todas as peças deste quebra-cabeças insolúvel de privilégios e poder se encaixarão perfeitamente, se fizermos nossa pesquisa. Só que não é assim. Escrever sobre pessoas que têm uma experiência de identidade diferente da nossa não é um desafio narrativo de simples solução. Vários escritores que são “especialistas” em uma cultura específica ainda criam estereótipos pobres e vulgares quando se trata de trazer esta especialização para criar personagens reais.

As raízes da prática de pesquisa ocidentalizada de culturas diversas incluem eugenia, dissecações, esterilizações forçadas e, frequentemente, o véu desumanizador da antropologia. Não estou dizendo que “toda a pesquisa é má”, mas sim que temos que ter consciência das histórias complexas e mesmo dolorosas que abordaremos para que não repitamos os traumas já causados.

Eis o que diz o escritor de American Horror Story, James Wong: “Fizemos uma pesquisa profunda sobre magia negra e claro, não existia tanta coisa para a gente trabalhar em cima porque nada disso é verdade (risos). Mas quando fazemos pesquisa, encontramos muitos símbolos sobre fertilidade e fomos juntando e misturando este e aquele até resultar na cerimônia que criamos”. A despeito da sua opinião sobre American Horror Story, positiva ou negativa, este é um exemplo excelente de como a pesquisa é somente o primeiro passo. Tendo feito uma “porção” de pesquisa, o time de escritores optou por jogar as cerimônias de fertilidade num caldeirão, misturar tudo e criar algo novo. Veja que a ideia principal era de que nenhuma destas crenças tinha alguma verdade é algo risível para o Sr. Wong. Uma mistura de elementos pode ser bem feita. No entanto, se misturada, como geralmente se faz, com flagrante desdém pelo sistema de crenças que professa, o resultado é uma massa padrão, que não é isso ou aquilo, versão sintética de uma cerimônia sagrada enraizada em tropos de racismo e desrespeito.

2. Seus parâmetros são uma merda (¹)”

Diz Juno Díaz: “A única coisa que se pode dizer de um cara que escreve na perspectiva de uma mulher é: seus parâmetros são uma merda”. A marca de um grande músico não é a sua habilidade com o instrumento (²), mas sua capacidade de ouvir. O patriarcado vem ensinando desde sempre aos homens (NT: gênero) que supostamente nós somos especialistas automáticos em qualquer assunto, então por que ouvir o que outra pessoa tem a dizer sobre o assunto? Resposta: Para escrever o outro nós temos que ouvi-lo. Para ouvir precisamos calar. E esta não é a uma tarefa simples, só esperar alguém terminar de falar para então desembuchar imediatamente seu ponto de vista. Sério. Sente-se, respire profundamente e ouça o que as pessoas em volta estão dizendo. Ouça a você mesmo, seu próprio eu. Suas dúvidas e medos, as coisas que não quer admitir. Ouça as coisas que as pessoas dizem que fazem você se sentir desconfortável. Sente-se com este desconforto. Compreenda que está errado. Então tente errar menos e vá em frente.

3. Empoderar (³) importa

Diz-se que o conflito é a espinha dorsal da história, e o poder é o cerne do conflito, o que faz a história ter importância. Mas a nossa classe raramente oferece uma discussão sobre empoderamento e suas faltas e falhas. Como escritores de ficção não esperam que sejamos versados em escrever sobre o empoderamento, os detalhes, a sutileza, a complexidade disto ou a dor no coração. Habitualmente, pesquisa de fatos toma o lugar de diálogos profundos sobre opressão e resistência.

A compreensão do empoderamento importa mais do que detalhes tangíveis.

Cada personagem tem uma relação com o poder, que inclui as faces: institucional, interpessoal, histórica e cultural. Que é representada das micro-agressões aos crimes de ódio, de orientação sexual, à imagem corporal, das mudanças nas posturas de vida devido aos aborrecimentos cotidianos e diários e no profundo trauma histórico sofrido por uma comunidade. Poder afeta a relação do personagem consigo mesmo e com os outros, sua jornada física e emocional através da história. Se você ignora isso, ao final do processo você obterá bonecas de papel ou rostos brancos pintados de preto.

 

 

Lizzie Bordello e as Piratas do Espaço de Germana Vieira – www.lizziebordello.com/

4. Esqueça o outro. você consegue escrever sobre si mesmo?

Todo o tempo que despendemos escrevendo sobre o outro, nós negligenciamos o verdadeiro problema sobre escrever nós mesmos. Os privilégios sobrevivem na invisibilidade e no silêncio. Privilégios também nos cegam a respeito de quem nós somos e de como somos vistos pela sociedade à nossa volta, e não percebemos que possuímos um escudo que nos dá proteção extra no jogo da representação social. Então vemos tantos caras bonzinhos e perfeitos, salvadores brancos e machos que fazem tudo “certo” e sabem exatamente como agir.

Você, possivelmente, não tem ideia de como os outros o percebem e, principalmente, se a imagem que faz de si mesmo é desconfortável por conta da qualidade do poder que ela perpassa. Salta na página este tipo de abstração do escritor.

Não existe escassez quando o assunto é livros de pessoas brancas falando de pessoas negras, o que não vemos muito são livros de pessoas brancas escrevendo sobre a experiência emocional, política, e social de ser um branco, os desafios e complexidades de ser branco. Nós não vemos muitos homens escrevendo sobre o patriarcado, como isso nos estragou, como diariamente ao nosso redor, aqui e ali, dançam os discutíveis gêneros binários. Sim, isto soa como tópicos para uma dissertação, mas na verdade são exatamente os tipos de conflitos internos que dão vida a um personagem.

 

5.  “Escrita racista é uma falha na construção da história”

Kwame Dawes apontou esta falha na AWP (Association of Writers and Writting Programs). Eu a mencionei anteriormente e vale a pena repetir de vez em quando. Nós falamos sobre preconceito e ódio de gênero como se eles fossem somente morais ou políticos, no entanto, essa abordagem resulta em estereótipos redundantes. Se você escreve estereótipos, sejam eles personagens, pontos na trama, ou pistas contextuais, você está escrevendo alguma porcaria que vem sendo repetida ao longo de gerações. Isso é chato, você consegue fazer melhor.

6. Caso de vida ou morte

Tendo dito que a escrita racista é um caso de como construir sua história, quero deixar claro que vai muito além disso. Normalmente o racismo é colocado em pauta como “ofensivo” ou discute-se o “politicamente correto”. Este é o ponto para debate: nem tanto isso, nem tanto aquilo. Estes formatos são uma moldura condescendente e desumanizadora do diálogo. Estamos falando de vozes continuamente silenciadas e apagadas pela corrente principal da cultura hétero-branca-machista.

Estamos falando da vida e morte de povos inteiros, estamos falando de auto estima e humanidade. Mesmo sendo adultos, com raras exceções, não percebemos como lidar com esta imagética. Pois quando criança não nos foram dadas as ferramentas para lidar com isso. Elas, as crianças, se deparam com isto mais do que ninguém. As altas taxas de suicídio e a opressão racial e de gênero que elas internalizam são reais.

Não podemos continuar criando gerações de crianças negras sob a égide de que só há espaço para elas como os caras maus nas histórias ou o figurante que vai morrer e gerações de crianças brancas pensando que estão perto de Deus só por causa da aparência. Não podemos continuar promovendo normativas sexistas hetero/cis e ideias racistas em nossa literatura. Criando uma configuração padrão de raça e gênero. Se você não está trabalhando contra isso conscientemente, está trabalhando a favor. Ser neutro não é uma opção. O luxo de se pensar deste jeito tem que acabar.

Citando Junot mais uma vez. “Eu acho que a menos que você esteja trabalhando ativa e conscientemente contra a atração gravitacional da cultura, você criará uma temática previsível com esta representação babaca de estereótipos. Sem falhas. A única maneira para fazer isso é admitir para si mesmo que você não é bom com estas questões, e estar consciente do processo de criação destes personagens.”

7. Ritual ≠ Espetáculo

Recentemente editei “Long Hidden”, uma antologia de ficção especulativa com contornos históricos. Eu e minha co-editora, Rose Fox, recebemos um grande número de submissões que não tinham nenhum elemento especulativo e apresentavam cenas de cerimônias não-cristãs. Culturas e crenças diversas de outros povos não são fantasia. Uma coisa é um semideus ou espírito andar por ai, interagindo com as pessoas – só essa interação por si terá uma certa complexidade – outra coisa é pessoas que celebram a sua crença serem incluídas no elemento fantasia, ou seja, serem consideradas não reais (NT), este tipo de coisa caracteriza-se como racismo cultural imperialista.

Além disso, a cultura de outras pessoas não é um circo, um show de horrores, um vídeo de música pop, uma paródia kitsch de um lar, uma fantasia de Halloween, uma afirmação para seu próprio ego.

Veja acima o que disse o roteirista de American Horror Story: “nada disso é real (risos)”. Se a possibilidade destas crenças serem reais é uma piada não escreva sobre elas.

No espetacular “Is Paris Burning?” Bell Hooks escreveu que “ritual é o ato cerimonial que carrega um significado… que vai além da aparência, enquanto espetáculo funciona somente como uma apresentação dramatizada feita para entreter… estes elementos de um dado ritual que são empoderadores e subvertem a ordem, podem não ser perceptíveis para quem olha de fora.

Por isso é fácil para um observador branco retratar rituais negros como espetáculo. Mais adiante, Hooks argumenta como o documentário Paris is Burning reforça esse retrato espetaculoso e desumanizante do ritual quando uma das pessoas retratadas no filme é morta: “tendo servido ao propósito do espetáculo, o filme abandona-o/a… Não há cenas de pesar pela sua morte. Falando grosseiramente, sua morte é suplantada pelo espetáculo. A morte não é  divertida.”

rani-e-o-sino-da-divisao-jim-anotsu-8582351879_600x600-pu6ec26b33_1

 

 

8. Pesquisa do Outro: História com Estereótipo

Uma estratégia comum para escrever sobre o outro é inverter o estereótipo. O que é somente um começo, porque você continuará apoiado no clichê original, na verdade, terá que ir mais longe. Para começar uma contra narrativa, você tem que saber o que está lá fora. De outra forma trabalhará no mesmo caminho e chegará à mesma porcaria. Textos como o de Edward Said, Orientalismo, famoso por virar o jogo da antropologia branca, analisando sua própria análise, não refletem o que as pessoas querem dizer quando se referem a pesquisar sobre, quer dizer, não há a análise sobre a pesquisa na sua pesquisa, e a análise é tanto ou mais do que o subtexto da história que está contanto. Portanto, fique atento ao seu poder opressor.

 

9.  Evite o Enredo “Sou o Único Capaz de Salvar o Mundo”

 

Falando de estereótipos, vamos pegar o Mágico Negro como exemplo, usada excessivamente no meu gênero preferido, ficção especulativa (FFC). Se no seu livro existir duas pessoas negras e ambas têm superpoderes e representam forças do bem e do mal você tem um problema. Entre estes dois personagens será expressa uma gama de características e complexidade emocional genuinamente brancas. Não importa se um dos personagens seja o bonzinho, acredite, você vai errar.

Na verdade, nós temos que ultrapassar o enredo do tipo O Escolhido, “The Chosen One”. Esse tipo de trama só tem um parâmetro, nada mais é que a representação do Salvador Branco.

– Num mar de rostos negros/mulatos/índios/orientais existe uma pessoa capaz de salvar o mundo!” Damos um zoom e o escolhido é… aquele com a cara branca. –

Como pessoa, esta suposição do salvador não existiria. Como escritor, eu imaginaria desse jeito. Resolve uma série de problemas se o personagem for pré-determinado desta forma para um épico confronto final. O personagem construído dentro do molde “o único capaz” fornece a razão para o antagonista querer colocar o povo nas trevas, para o levantar das lanças e o inevitável e emocionante clímax. A mesma PORCARIA que temos visto zilhões de vezes. Vamos fazer melhor.

10. O fato de que você vai errar não é razão para não fazer

Por volta dos meus vinte anos eu decidi que gostaria de falar sobre sexismo. Eu sabia todas as palavras que queria dizer, e não disse. Um dos motivos do meu silêncio é que meu conhecimento ia até certo ponto, assumi que iria fazer alguma coisa errada, e qualquer coisa que fizesse errado seria agravada pelo fato de que eu era só um de tantos homens falando sobre sexismo. Então eu me percebi jogando comigo mesmo, um jogo mental de ironia, ego e auto percepção, totalmente sem sentido que me impedia de fazer uma coisa que sabia ser importante.

Isto é uma verdade para todos aqueles que escrevem sobre outras culturas e experiências. Você vai estragar tudo e vai ser épico. Eu sei, eu fiz isto. Não significa que não deve fazer. Significa que você deve desafiar a si mesmo a fazer melhor e melhor a cada vez, aprender com seus erros ao invés de deixar-se acovardar por eles e/ou colocar-se numa posição defensiva. Como resultado deste empreendimento se tornará um escritor melhor.

11. A Feira Livre Que é O Mercado Editorial

O cenário atual na indústria editorial ainda inclui branqueamento das capas de livros, racismo, sexismo, cis-normativas, classismo, homofobia e capacitismo (NT: preconceito contra pessoas que têm qualquer tipo de condição física debilitante ou que as torna ineptas a se adaptar aos padrões considerados socialmente “normais”: nanismo, falta de um dos membros, cegueira etc.) A maioria dos agentes e editores são brancos, e a cultura branca rege a indústria. Autores negros lutam para ter sua voz ouvida, e nas editoras que apoiam a diversidade de publicação são autores brancos que, em sua maioria, escrevem sobre personagens negros. Apropriação cultural importa neste contexto porque se trata de quem tem acesso e de quem é pago, o que vai além de problemas como construção pobre da trama ou representação desrespeitosa. Como brancos temos que compreender que, além do contexto dentro da história que escrevemos, existe um contexto social do qual nosso trabalho faz parte.

12. Já considerou o ‘POR QUÊ fazer’? E o “NÃO fazer”?

Este processo requer uma busca da alma e sentir-se desconfortável. Sem desconforto, você não cresce. Às vezes, as pessoas evitam as questões mais básicas. Por que você sente que cabe a você escrever a história de outra pessoa? Por que você tem o direito de tomar para si a voz de outro? A resposta nem sempre é não – como escritores estamos constantemente penetrando na cabeça de outras pessoas. Com muita frequência, no entanto, não paramos para considerar se é a coisa certa a fazer. Então, as vezes a resposta é mesmo não.

 

 

12 Fundamentals Of Writing “The Other” (And The Self)

http://www.buzzfeed.com/danieljoseolder/fundamentals-of-writing-the-other#.vcXPyDzw8

Daniel José Older é um escritor do Brooklyn (NY/EUA), editor e compositor, Salsa Noturna, “ghost noir colection”, foi aclamado como impressionante e original pelo  Publishers Weekly. É editor da antologia Long Hidden: Speculative Fiction from the Margins of History, e seu livro de fantasia urbana The Half Resurrection Blues, o primeiro de uma trilogia, foi lançado em janeiro deste ano pela Penguin’s Roc. Dissertações e contos de sua autoria foram publicados na  The New Haven Review, Salon, Tor, PANK, Strange Horizons, e Apex. Sua música, ponderações e aventuras de ambulância moram em ghoststar.net e @djolder.

 

 

 

Coisas que gostei em O Andarilho das Sombras de Eduardo Kasse Ed Draco.

 

 

562934_452750564755791_959192777_nO Andarilho das Sombras – Eduardo M. Kasse – 378 páginas – Editora Draco – 1a Edição 2012

Demorei muito para falar deste livro, justamente por causa do título das minhas resenhas – o que mais gostei em O Andarilho das Sombras foi…, pois só conseguia completar com – tudo.

Na verdade, eu não gostei, eu adorei Andarilho das Sombras. Quando comprei o livro, no entanto, fui redondamente enganada pelo autor. Explico, fantasia histórica não é o primeiro item na minha fila de leituras, embora seja tão fascinada por História que esta disciplina chegou a ser cogitada como uma opção de carreira. Além de não ser muito chegada ao assunto “beber sangue e ser imortal”.

– Não é um livro sobre vampiros, ele me disse.

Eduardo Kasse não mentiu nesta parte, não se trata disso, mas o personagem se alimenta do sangue dos vivos e o autor narra estas passagens com tal maestria que agradeço muito ter sido ludibriada.

O livro conta a saga do filho de nobres Harold Stonecross, um ser imortal, amaldiçoado pelos deuses antigos, perseguido pela igreja católica, a quem despreza acima de tudo. Usufruindo do conforto que rouba dos nobres e padres, título e ouro, respectivamente, ele não sente culpa ou arrependimentos, aceita a sua jornada pela imortalidade quase como uma dádiva, a despeito das circunstâncias que o transformaram. De vila em vila escolhe suas vítimas e seduz mulheres.

São duas as linhas cronológicas da narrativa, a atual e a passada, tão bem costuradas que não dá para se perder, o leitor é conduzido com acuidade pelas entrelinhas, situando-o no momento que está sendo explorado naquela determinada parte. A leitura acaba sendo arrebatadora e só no final ficamos sabendo que evento/maldição tornou Harold Stonecross imortal.

Quanto a parte histórica do livro, ele se passa nos séculos X e XI na Inglaterra. O mais legal, além da trama e estilo narrativo, é que, ao invés de centralizar a ação num determinado evento histórico, importante e conhecido, ela corre pelos caminhos do homem comum daquela época. O autor teve o cuidado de pesquisar profundamente os hábitos das pessoas, nobres, religiosos, camponeses, ermitões – não heróis – pessoas como eu e você. E não se pode dizer que Harold é um herói, ou uma vítima, ele é assim como nós, meros mortais, só que não…  já que no caso de Harold ele vive para sempre. Eduardo Kasse nos diz no seu livro das pessoas e costumes da época, do que eram feitas as casas e abrigos, o que comiam e como eram cultivados, comprados, preparados seus alimentos, passando pelo vestuário, armas, hábitos, músicas etc.  Tudo é tão vívido que dá até para sentir o cheiro da comida, ouvir os animais na mata, perceber a textura das roupas no corpo.

Há outros dois livros da saga, que se chama Tempos de Sangue, um que se passa na Itália, Deuses Esquecidos, neste é o camponês Alessio que recebe a maldição e outra, Guerras Eternas, que retorna à Inglaterra no século XII onde encontramos novamente Harold Stonecross e outros imortais.

Recomendo muito a leitura destes livros, para quem gosta de ficção histórica e para quem não gosta, para quem gosta de bebedores de sangue e para quem não gosta, para quem gosta de heróis clássicos e principalmente para quem não gosta.

http://eduardokasse.com.br/blog/2015/08/13/a-literatura-e-a-economia-criativa/

http://editoradraco.com/2012/06/11/pre-venda-com-20-desconto-e-frete-gratis-de-o-andarilho-das-sombras-eduardo-kasse-2/

 

IMERSÃO – EXPLORANDO OS CINCO SENTIDOS – DICAS PARA O ESCRITOR INICIANTE 31

Infelizmente eu não tenho tempo para muita coisa na minha vida de professora. Se somar minhas horas de trabalho remunerado às de trabalho não remunerado sobra pouco tempo para comer, ler e tomar banho, quanto a dormir a gente se ajeita. A maior parte do que escrevo aqui remete a experiências e leituras pessoais. Com certeza alguém já fez um tratado sobre isso, um TCC. Um blogueiro americano escreveu em inglês um artigo cheio de adjetivos, redundâncias, exemplos locais que não dá para entender, com no mínimo 1500 caracteres para falar de como não esquecer seus cinco sentidos, ou parte deles, ao escrever sua história.

Ontem à noite estava lendo um livro de ficção histórica e imaginando o trabalho do autor em coletar sua pesquisa para contar o que aconteceu setecentos anos atrás. Comida, plantas, remédios, veículos, armas, roupas e materiais. Imergi no livro e percebi o porque, ele falava do cheiro da comida, das texturas das roupas, do gosto dos remédios, dos diversos sons que o exército em marcha produzia.

Por que alguns livros e contos que leio parecem não oferecer a imersão na história que o autor pretende sugerir? Acho que faltam os cinco sentidos parece ser um boa resposta.
Autores iniciantes imaginam seu livro como um filme, se você sentar numa sala de cinema você vai ver e ouvir a cena – já se tentou fazer cinema com cheiro, mas o fracasso foi diretamente proporcional ao cheiro dos refrigerantes e salgadinhos que as pessoas consumiam, o perfume que usavam ou a falta dele. Setenta por cento da nossa percepção é visual, um filme como Chocolate, com Juliet Binoche e Johnny Depp, remete ao sabor de bombons e ao cheiro da calda quente, mas não sentimos nem o cheiro, nem o sabor ao assisti-lo, pressupomos.

Escrever é suposição bruta de todos os sentidos. A dimensão da experiência sensorial assume o caráter de símbolos sobre o papel e o leitor pode até dispensar a visibilidade destes símbolos: o braile, áudio-livros, contadores de história que leem livros para uma audiência. Se fechar os olhos por alguns momentos, os outros sentidos passam a compensar paulatinamente a falta do principal. Fechei meus olhos e percebi que minha vizinha do apartamento de baixo está fazendo pernil e alguém lava roupa ou o piso com produto perfumado, o ar que entra pelo meu nariz está seco, mesmo tendo chovido ontem à noite e pouco ou nada do cheiro de mato do parque em frente consigo sentir. Posso continuar assim explorando os outros sentidos, tato – a secura do ar mencionada acima – e paladar.
Ao construir seu universo,  ao criar os personagens, cenário e história, o pentagrama sensorial deve ser pensado e explorado, não necessariamente destrinchado. Explore e recolha o que de mais contundente ou contextualizado no sentido (tato-paladar-audição-olfato-visão) e inclua na história. O escritor iniciante que concentrar seu foco só na aparência ou nos ruídos perderá a oportunidade de realizar esta imersão.
Já li vários trechos e contos de autores cuja descrição da cena é como se fosse um roteiro, que deve ser completado pelo leitor. Não faz sentido. O leitor quer viver uma história, quem cria a história é o escritor! Se o leitor tiver interesse em ampliar o universo que o escritor criou ele dispõe de outras ferramentas: desenhar o personagem como ele imaginou, escrever um fan-fic e publicar numa plataforma online para compartilhar com outros fãs etc.
O escritor iniciante imagina a cena e começa por um verbo – virou-se, olhou, ouviu, agachou, levantou – acrescenta um complemento que fomenta mais dúvidas do que surpresas ou questionamento ao leitor e quase nenhuma imersão e a sentença geralmente acaba no nada:
Virou-se e viu um estranho que não sabia dizer quem era.
Olhou para uma coisa estranha que não sabia dizer o que era.
Levantou-se estranhamente não sabia dizer o porquê.
Ouviu um som estranho vindo não sabia de onde.

Por exemplo, o escritor quer descrever uma cena noturna, o mundo será de vultos, dependendo de qual sensação precisa para dar ênfase à sua história terá que explorar um ou outro sentido. Vamos supor que não se trate de medo ou perseguição – o mais comum – mas de abandono ou desamparo, o autor pode trabalhar os odores que a noite exala, talvez uma área suja e pouco cuidada da cidade, um canto escuro cheirando a urina ou vômito. Uma caverna em que o personagem se escondeu e sente sob os pés não a dureza da pedra, mas a umidade de um curso d’água ou a maciez de fezes de animais. Feche os olhos imagine-se por completo dentro da história, sem vê-la, explore um pouco os outros sentidos.

Precisando de pesquisa, vá atrás. A terra na região sudeste brasileira é vermelha por causa do ferro que contém, o chão tem um cheiro agradável e ferroso depois da chuva. O autor que escrever sobre um homem que vira guará nas noites de lua cheia em Minas Gerais, pode usar este elemento e combiná-lo com o gosto ferroso do sangue das vítimas, combinar a temperatura do sangue com o calor das noites de verão etc. Se o autor se preocupar somente em mencionar que o lobo era grande, forte, musculoso, peludo com grandes presas, uivava e corria e a vítima virou-se e viu algo estranho atrás dela, a cena perderá metade do impacto em relação àquela na qual outros elementos sensoriais foram usados. Além disso, esse acréscimo sensorial torna a escrita mais rica e é uma das razões por trás da frase – “Gostei mais do livro que do filme”.

Pense em todos os elementos sensoriais que estão envolvidos na construção de sua história: gostos, cheiros, textura e peso, além dos sons e imagens e no que elas podem enriquecer a sua narrativa. Não precisa encher páginas e páginas de busca sensorial se esta busca não representar nada efetivamente, o que você quer é que o leitor seja imerso no mundo que você criou, não se afogue em excessos abandonando a leitura.

Feche os olhos e responda: que cheiro, que gosto e qual é a sensação sobre a sua pele neste momento?