Descrevendo um boi

bOI

Como começar a descrever um boi? Dando a ele o nome de boi.

Abro as abas dos dicionários, livros, sites de pesquisa e de imagens antes de começar a escrever. Sei que precisarei recorrer para buscar a palavra adequada, verificar uma referência, me inspirar. O dicionário de sinônimos é um dos sites usados pelos escritores, afinal é um erro repetir, um vício de linguagem.

O português é uma língua rica, mas de nomes esquecidos. Uma características dos nativos de língua inglesa é a fascinação pelos sinônimos, por aprender outras formas de dizer as mesmas palavras. Na escola há competições de spelling bee, os competidores precisam conhecer palavras incomuns, as pessoas jogam scrabble, um jogo em que o que conta é o tamanho do vocabulário. Além do fato do inglês ser uma mistura de várias línguas que eram usadas em concomitância antes da consolidação do idioma.

O mesmo não acontece com o português, nossa cultura é diferente, não damos tanto valor ao estabelecido. Há quem ache importante não deixar o vernáculo morrer, há quem discuta que a língua é um organismo vivo e deixemos que viva com liberdade, se recrie a partir do hoje. Nós somos pródigos em cunhar palavras, regionalismos, nomes próprios. Será que Guimarães Rosa seria Guimarães Rosa se não fosse brasileiro? Lógico que um bom conhecimento do vernáculo é importante para o escritor, não precisa ser só isso no entanto.

Com a massiva difusão de livros de nativos de língua inglesa, ou que são traduzidos para o português através do original em inglês, o tradutor se depara com termos que se usados literalmente ficariam assim: “tinha um brilho brilhoso”, ou “tinha um brilho rutilante”, o primeiro é uma redundância, o segundo pode estar mais próximo do original, mas provoca uma pausa na leitura ou pode não fazer sentido ao público ao qual se destina. Óbvio que um ou outro termo menos comum é interessante para se colocar num livro. O leitor aumenta seu vocabulário. Como dizer que o rio coleava ao invés de serpenteava. Mas não em todas as linhas, em todos os parágrafos, ou a leitura ficará cansativa e desinteressante.

O que isso tem a ver com dar nomes aos oxen, digo, bois. Palavras generalizantes ou com significados distorcidos são usadas para evitar redundância ou causar a tal “estranheza”. A história causa estranheza, as palavras mal colocadas causam desinteresse do leitor. O escritor em português, amador, iniciante, muitas vezes usa o termo generalizante quando quer falar do específico, por exemplo, por causa dos manuais de RPG e livros mal traduzidos ou porque, ao invés de mudar a estrutura da frase, prefere usar uma palavra que pretenda deixar o leitor em suspense e que, na verdade, leva o leitor a suspender a leitura.

  1. “Pelo contorno da figura, podia-se dizer que era uma pessoa”.
  2. “A figura lançou um coquetel molotov em direção ao tanque”.
  3. “Ela tinha uma bela figura, expressão confiante no rosto e andar seguro”.

No caso do número um, a redundância de contorno e figura. “O contorno de uma pessoa, podia-se dizer”.

No caso número dois falta clareza, a primeira acepção da palavra figura não significa a forma de uma pessoa, refere-se à forma de qualquer corpo ou ser, uma barata, um alienígena. A não ser que seja isto mesmo, que o autor esteja se referindo a uma criatura fantástica ou desconhecida, a palavra é inadequada. Um ser humano jogou o coquetel molotov, então é preferível dar nomes aos bois. “A pessoa/Uma pessoa/Um sujeito/A manifestante lançou um coquetel molotov em direção ao tanque.” No terceiro caso está claro que a palavra figura se refere à segunda acepção da palavra, aparência de alguém.

“O castelo apareceu por entre as brumas da manhã. Os muros altos, cujas paredes eram feitas de pedra, cercavam a cidade e protegiam a construção no seu centro”.

Fica melhor assim:

“A névoa da manhã se dissipava. As torres ficaram visíveis e, em seguida, a muralha de pedra que protegia o castelo e a cidade ao seu redor”.

Se a escolha da palavra não está ligada ao ritmo dentro da sentença/parágrafo, sensação de não inclusão ao ambiente ou ao nome do lugar/pessoa, o ideal é que usemos a palavra mais comum, neste caso névoa é melhor do que bruma. Já uma muralha é um muro alto espesso geralmente feito de pedras. Por fim, se o castelo estava atrás dos muros, não foi ele que apareceu primeiro, foram as suas torres ou as torres de vigilância da própria muralha.

“A criatura se aproximou com suas oito patas e um corpo gigantesco e monstruoso. Fumaça saia de suas narinas.”

Se é um monstro, deixe claro na primeira menção. Fumaça não é a palavra certa, a não ser que se trate de um dragão. Seria interessante economizar adjetivos e descrever com metáforas, mas não vou usar no exemplo, só colocar um pouco de tempero para melhorar o resultado:

“O monstro se aproximava. Quando uma das oito patas gigantescas tocava o chão, as paredes tremiam. A criatura arfava de raiva, um bafo quente e podre.”

Procure a palavra certa, coloque na ordem certa de importância. Seja direto, simples e claro. Vocabulário inadequado ou escasso, faz com que a nossa ideia chegue distorcida ou não chegue ao leitor. Por outro lado, ter um vocabulário muito amplo não significa que dominaremos a língua, precisamos saber como usar as palavras numa frase, ter noção de conjunto, ritmo etc.

Links de outros artigos que falam do uso das palavras.

A Inconfundível Clareza do Ser – Dicas para o escritor iniciante – 18

IMERSÃO – EXPLORANDO OS CINCO SENTIDOS – DICAS PARA O ESCRITOR INICIANTE 31

A Força da Palavra – Dicas Para o Escritor Iniciante 17

Reino Sem Fim – RPG e ficção escrita – Dicas para o escritor iniciante 24

About claudiadu

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Posted on October 31, 2017, in Dicas Para Escritores Iniciantes, Uncategorized and tagged , , , , , , . Bookmark the permalink. 2 Comments.

  1. Olá, Claudia!

    Nossa, nunca me atentei a colocar primeiro na frase aquilo que o detentor do ponto de vista vê antes do restante!
    Fantástico!
    Obrigado pelas dicas.

    Um abraço,
    Lucas Palhão

    • Esta dica vale para cenas descritivas e de ação, em outras situações. Suspense, flash back etc, podemos começar de outro modo. Também há a opção de começar por aquilo que te chamou mais a atenção na cena e depois seguir pelo resto, este tipo de narrativa exige muita atenção do autor para não deixar o leitor perder o foco do personagem.

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